quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A árvore e a casa

Foto: Paulo Cesar

Duzentos anos atrás, existia naquele lugar entre o nunca e o talvez uma densa floresta.
Logo surgiram as primeiras pessoas, que derrubaram as seculares árvores para construir suas habitações no meio da floresta.
Duzentos anos depois, na casa assobradada e meio que assombrada - há muito tempo abandonada, sem mais florestas ao redor -, eis que ressurge pouco a pouco os primeiros galhos exteriores, que foram crescendo de dentro para fora, silenciosamente, até partir primeiro os vidros, depois as janelas, para enfim ruir a própria casa, que ao primeiro vento forte desabou...
As ruínas ficaram rodeando a imensa árvore, escondida durante décadas no interior do sobrado, como se fossem algum monumento megalítico qualquer...
E curiosamente, naquele lugar desabitado, outras árvores tornaram a renascer, até que uma pequena floresta ressurgiu, primeiro cobrindo e depois engolindo com seus galhos e folhas o que sobrara da casa.
Ninguém sabia, mas foi graças ao esforço das árvores, com seus galhos contidos, que o sobrado não tombara muito antes do acontecido.
Um dia, surgiu uma família por ali, e começou a desmatar tudo, até que sobrara aquela imensa árvore... O menino cresceu, subindo naqueles galhos e morando numa pequena casa, quase escondida ao lado da árvore. Quando ele envelheceu e enriqueceu com a venda das terras ao redor, pensou em construir naquele local a sua imensa casa, onde a sua família se enraizara.
A árvore era um Pinheiro, o sobrenome da família era Machado...
Diante desses curiosos nomes - salvo se essa história tenha se passado na histórica cidade gaúcha de Pinheiro Machado, no Brasil - esta fábula estava fadada a não ter um final feliz...

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A Cigana

(Foto de Carlos Bacha.)

Cercada de mistérios, deusa cigana, detentora dos segredos e conhecedora dos enigmas das linhas encravadas nas mãos. Sábia e assertiva, dominava os saberes ocultos, orientando os que desvendavam seus poderes.
Revelava-se verdadeiramente à poucos. Aos que tinham olhos e ouvidos atentos; mente e coração receptivos.
Era na imensidão - lago que dava vazão aos olhares perdidos - que revelava sua face e descortinava os caminhos.
Foi no compasso de duas luas, uma cheia, outra minguante que surgira.
Foi um olhar único de uma só inteireza que revelara-lhe a cigana, aquela que lhe daria as respostas há tanto procuradas.
Um único mistério ainda pairava no ar. Da imagem dual, mal definida, surgia uma sombra que impedia visualizar-lhe o rosto. Sua identidade mantinha-se ainda em segredo.
Mas eis que o sol acariciando a areia da praia fez dissiparem-se as trevas. A imagem da cigana sumindo ao longe, confundindo-se à linha do horizonte. Na areia com letras douradas pelo sol, a cigana revelara seu nome, seu último segredo: INTUIÇÃO

domingo, 8 de fevereiro de 2009

The book is on the table

Foto: Raquel Lima

O livro está sobre a mesa... Aberto e vivo, com suas folhas movidas pelo vento, que parecem asas querendo voar... A frente dele, aprisionado em si mesmo, um jovem tímido parece estar num curioso transe... Durante algumas horas sente-se outro. Seu mundo ao redor sumira por encanto e ele estava agora noutro mundo, bem distante. Como em Pasárgada... Mundo estranho, em que as fronteiras aparecem e desaparecem a todo instante...
Do lado de lá da fronteira, o jovem ouve vozes, vê pessoas, fala com estranhos, sente-se vivo... É forte, valente, belo, imortal... Há em si uma riqueza interior fenomenal.
Do lado de cá da fronteira, quem o vê, enxerga apenas alguém imóvel. Nada vê, ouve, fala... É um garoto introspectivo, que pouco se expõe, quase nada diz, é uma figura meramente decorativa... Passa desapercebido em qualquer lugar...
No mundo de lá, ele é audacioso, galante, impulsivo. Corteja a princesa em seu castelo, vive pelo reino a cavalgar, enfrenta dragões...
No mundo de cá, vive sempre sozinho, cheio de ideias, mas sem com quem conversar...
Tem vontade de não mais voltar, ficar por lá eternamente, onde possui tudo que gostaria de ser...
Naquele mundo como no outro, venta forte, e é somente nisso que os dois se parecem...
É um tempo de transformações. O jovem cavaleiro, depois de derrotar um gigante, vai naquele instante se declarar à princesa do brinco de ouro, pedir ao rei a mão de sua filha.
Mas alguém põe a mão sobre seu ombro esquerdo, e o guerreiro sai abruptamente de seu transe... Cai em si e assusta quem o desperta...
- Ai, desculpe! É que está na hora de fechar. Por favor, volte amanhã - diz a bibliotecária, que contava as horas para poder ir embora... Horas que até aquele momento se arrastavam lentamente...
Então, o jovem acordado de supetão de seu sonho que parecia não ter fim, deixa o livro sobre a mesa, marcado na página 160, fechando-o como se fosse um baú secreto.
Foi despertado de seu sonho tão bruscamente que quando já está saindo na porta da biblioteca pública, vê que a flor que daria a princesa ficara em sua mão. Surpreso e sem saber como explicar isso à moça que vinha fechar a porta, deixa a flor na escadaria do prédio e sai apressado em direção a casa de sua avó...
O livro está sobre a mesa... E ali continuará imóvel até o dia seguinte.
A moça, que antes desdobrara a orelha do livro, feita pelo jovem, coloca agora em seu lugar um marcador exatamente na página por ele dobrada...
- Coitado do garoto. Acho que o assustei. Amanhã, se ele voltar, poderá continuar sua leitura - pensa ela despretensiosamente.
Ao sair na porta, vendo a misteriosa flor, de um tom rosado que nunca vira na vida, pretensiosamente lembra-se do rapaz, e sorri de um jeito que só faz quando um outro livro seu está aberto sobre sua mesa de trabalho... Feliz sem saber o motivo, chaveia bem a porta do prédio e destranca lentamente a pequena porta interior...
A tarde está fria, mas seu coração se aquece, seu rosto cora, o tempo voa... A moça segue para casa, com a rosa dentro do casaco para não despetalar aquele pequeno sonho, sentido de olhos bem abertos... Deseja que o tempo passe logo, para amanhã voltar ao trabalho e reencontrar suas coisas no mesmo lugar.
Enquanto cada um dos jovens, o rapaz e a moça, vão para suas casas, por caminhos inversos, lá dentro da biblioteca - agora trancada até o dia seguinte -, o vento entra sem ser convidado, por uma janela que tem um vidro quebrado, fazendo o livro abrir suas páginas, abrir as asas e quase voar...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O primeiro cadáver do Azevedo


O suor escorria-lhe a face, as mãos ainda trêmulas, a respiração arquejante. Era seu primeiro, mas sabia, não seria o único. O desejo manisfestara-se incontrolavelmente tentador. Nenhum sentimento de culpa. Era prazer o que sentia. As mãos quentes sujas de sangue contrastando com o álgido corpo delgado que jazia em sua frente. O líquido viscoso escorrendo formara uma poça sobre o piso branco de linhas perpendiculares.

A sala de pintura sóbria, a cortina preta, o compartimento escuro... Pelas frestas da parede, alguns poucos raios do sol que já ameaçava se por, iluminavam de maneira desuniforme o local.

Olhou para os lados certificando-se de que ninguém testemunhava o ato. Eram três. Ele, o cadáver, e um silêncio absurdo transbordando no vácuo, interrompido apenas pelo som das batidas do martelo.

Ajeitou-o com cuidado sobre a mesa. Os olhos fechados, o cabelo arrumado, a pele limpa com um chumaço de algodão. E um ritual cumprido.

Olhou para o corpo inerte. Lembrou da promessa feita ao pai pouco antes de sua morte. Seria advogado.

Ele haveria de entender. Afinal herdara dele próprio esse gosto. Seria mais um Azevedo, agente funerário.