Foto: Raquel Lima
O livro está sobre a mesa... Aberto e vivo, com suas folhas movidas pelo vento, que parecem asas querendo voar... A frente dele, aprisionado em si mesmo, um jovem tímido parece estar num curioso transe... Durante algumas horas sente-se outro. Seu mundo ao redor sumira por encanto e ele estava agora noutro mundo, bem distante. Como em Pasárgada... Mundo estranho, em que as fronteiras aparecem e desaparecem a todo instante...
Do lado de lá da fronteira, o jovem ouve vozes, vê pessoas, fala com estranhos, sente-se vivo... É forte, valente, belo, imortal... Há em si uma riqueza interior fenomenal.
Do lado de cá da fronteira, quem o vê, enxerga apenas alguém imóvel. Nada vê, ouve, fala... É um garoto introspectivo, que pouco se expõe, quase nada diz, é uma figura meramente decorativa... Passa desapercebido em qualquer lugar...
No mundo de lá, ele é audacioso, galante, impulsivo. Corteja a princesa em seu castelo, vive pelo reino a cavalgar, enfrenta dragões...
No mundo de cá, vive sempre sozinho, cheio de ideias, mas sem com quem conversar...
Tem vontade de não mais voltar, ficar por lá eternamente, onde possui tudo que gostaria de ser...
Naquele mundo como no outro, venta forte, e é somente nisso que os dois se parecem...
É um tempo de transformações. O jovem cavaleiro, depois de derrotar um gigante, vai naquele instante se declarar à princesa do brinco de ouro, pedir ao rei a mão de sua filha.
Mas alguém põe a mão sobre seu ombro esquerdo, e o guerreiro sai abruptamente de seu transe... Cai em si e assusta quem o desperta...
- Ai, desculpe! É que está na hora de fechar. Por favor, volte amanhã - diz a bibliotecária, que contava as horas para poder ir embora... Horas que até aquele momento se arrastavam lentamente...
Então, o jovem acordado de supetão de seu sonho que parecia não ter fim, deixa o livro sobre a mesa, marcado na página 160, fechando-o como se fosse um baú secreto.
Foi despertado de seu sonho tão bruscamente que quando já está saindo na porta da biblioteca pública, vê que a flor que daria a princesa ficara em sua mão. Surpreso e sem saber como explicar isso à moça que vinha fechar a porta, deixa a flor na escadaria do prédio e sai apressado em direção a casa de sua avó...
O livro está sobre a mesa... E ali continuará imóvel até o dia seguinte.
A moça, que antes desdobrara a orelha do livro, feita pelo jovem, coloca agora em seu lugar um marcador exatamente na página por ele dobrada...
- Coitado do garoto. Acho que o assustei. Amanhã, se ele voltar, poderá continuar sua leitura - pensa ela despretensiosamente.
Ao sair na porta, vendo a misteriosa flor, de um tom rosado que nunca vira na vida, pretensiosamente lembra-se do rapaz, e sorri de um jeito que só faz quando um outro livro seu está aberto sobre sua mesa de trabalho... Feliz sem saber o motivo, chaveia bem a porta do prédio e destranca lentamente a pequena porta interior...
A tarde está fria, mas seu coração se aquece, seu rosto cora, o tempo voa... A moça segue para casa, com a rosa dentro do casaco para não despetalar aquele pequeno sonho, sentido de olhos bem abertos... Deseja que o tempo passe logo, para amanhã voltar ao trabalho e reencontrar suas coisas no mesmo lugar.
Enquanto cada um dos jovens, o rapaz e a moça, vão para suas casas, por caminhos inversos, lá dentro da biblioteca - agora trancada até o dia seguinte -, o vento entra sem ser convidado, por uma janela que tem um vidro quebrado, fazendo o livro abrir suas páginas, abrir as asas e quase voar...