quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Control + Alt + Delete

Foto: Mariah

O livro estava aberto em asas postas ao voo longo da imaginação, justo na página em que dizia: “Há mais mistérios entre o céu e a terra que possa supor nossa vã filosofia...” Na biblioteca vazia, os livros e os seus autores mortos conviviam em paz... Nas ruas desertas, o silêncio era ensurdecedor... No rádio de um carro deixado para trás, tocava no sistema autoreverse a canção The Delicate Sound of Thunder...
Uma misteriosa epidemia confinou todos em suas casas... O contágio era feito pelo ar. Abraçar, beijar, exteriorizar qualquer tipo de emoção era fatal... A reclusão foi o melhor caminho para conter seu efeito letal... Como lagartas em um casulo, as pessoas confinaram-se em cubículos individuais, depois trancaram-se dentro de si mesmas. Assim sobreviveriam até que a Cura fosse encontrada para esse novo mal do século.
Em casa, Adam Bah, um escritor solitário, antes mesmo do surto aparecer em sua região, relia como total devoção a um livro especial, como quem procura em suas páginas e linhas alguma pista para aquilo tudo. O Amor nos Tempos do Cólera, de autoria de um escritor, mescla de poeta com profeta, passara a ser seu livro de cabeceira. Ali nas entrelinhas ele julgava ter a resposta...
Com o mundo inteiro recluso, o que salvou parte da população sobrevivente foram as máquinas, em especial, a rede mundial de computadores que interligava as pessoas mundo afora, sem precisarem sair de casa. Reclusa, restara à Humanidade apenas interagir a distância. E assim passaram-se os dias, os meses e os anos. Experiências feitas em laboratório, com estranhas pílulas coloridas, com sabores de alimentos, davam vitaminas e proteínas às pessoas. As encomendas eram feitas aos robôs que também manufaturavam, além de alimentos, remédios, roupas, tudo mais, e enviavam o pedido ao vivente, via correio. Entrega feita por seres autômatos.
Na porta da casa havia abertura que esterilizava tudo, para só então serem consumidas pelo comprador... Ninguém mais saiu de seu cubículo em anos. Os relacionamentos eram feitos via máquina. A tecnologia sofisticara-se por conta das novas necessidades. Holografias passaram a ter, além de forma, perfume, toque, consistência. As mensagens eram vistas e sentidas como reais. De vez quando alguém sumia do mundo digital, mas os sobreviventes creditavam isso ás relações descartáveis... Tudo parecia ter voltado à normalidade, até o dia em que até mesmo os serviços ficaram comprometidos pelo desgaste das máquinas, que por mais inventivas que fossem, precisavam de comandos humanos para superar a imprevisibilidade do tempo e da vida. Sem a perspicácia humana, sua contraditória racionalidade e sua intuitiva emotividade, as máquinas extremamente racionais foram repetindo padrões previsíveis de comportamento. Com o tempo, os comandos travaram e como gagos, ficaram repetindo-se como dízima periódica.
Quando a energia acabou, por falta de manutenção dos cabos deteriorados, por falta de reparos nas usinas e outros investimentos, o mundo ficou em total escuridão. Sem as máquinas, as pessoas sentiram-se de volta aos tempos da Caverna. Bah, sem ter o que fazer, sem o sistema de ar refrigerado pra ventilar seu cubículo, teve que destrancar-se por dentro primeiro, para depois abrir a porta que o levou à rua e ao mundo real. Lá fora o dia era lindo, de um céu azul profundo sem igual. No entardecer, duas luas pairavam na abóbada celeste. Uma delas era o satélite natural da Terra, e a outra, de cor magenta, ele não sabia ainda, mas era Marte em rota de aproximação...
O mundo, como ele conhecera antes do confinamento não existia mais. Ruas vazias, casas também, tudo em total solidão... Então, Adam Bah vagou sem destino, até onde suas pernas e forças puderam chegar... Era noite fria quando, enfim, cansado, no banco da praça vazia, começou a rezar uma esquecida oração. Adormecera sentado, até que uma chama breve o acordou. De olhos bem abertos viu sentada ao seu lado uma bela mulher de olhos penetrantes que com a mão quente, aquecia sua mão. Por instinto e reflexo, num movimento brusco retirou a própria mão. Lembrou-se da proibição do contato, do afeto, do risco de vida que isso implicava. Mas a moça, com o olhar terno, disse: "Não é preciso mais temer. Tudo passou e nós sobrevivemos... Olhe ao redor!”
Naquele momento, o delicado som do trovão rebombou em seu peito. E ele, meio que sem jeito, foi aproximando-se da mulher e a abraçando com todo o carinho do mundo, como se a conhecesse desde sempre... Sem nada esperar em troca além daquele calor humano quase esquecido... Seu nome era Eve. Para ele (que ainda não sabia disso) e para o resto do mundo – que já estava a par dessa história desde sempre - , ela era a única sobre a face da Terra (assim como o jovem, na questão de gênero, também o era.) E assim reinicializou-se a Vida sobre o despovoado terceiro planeta, com se fosse um imprevisto comando e combinação de teclas nalgum imenso e invisível computador... A teologia e a tecnologia aproximaram-se misteriosamente desde então...

4 comentários:

Gabriela Borges disse...

Fico imaginando se isso fosse real ou se fosse daqui a algum tempo... Não tô preparada pra isso rsrsrs

José Antonio Klaes Roig disse...

Oi, Gabriela. Digamos q é uma licença poética q pode um dia tornar-se algo não tão fictício, se não mudarmos nosso modelo de vida e de consumo... Tomara q o destino contrarie meu texto... Brigadão, pelo comentário, querida. Abração. Zé.

José Antonio Klaes Roig disse...

maravilha de imagem, Elis.
Dentro desse nosso blog colavorativo e da ideia de um escrever o o outro ilustrar, essa parceria tem sido um exercício incrível de alteridade. Um lendo o texto do outro e usam imagens a partir dessas leituras. essa imagem, achei fantástica, e tudo a ver com a ideia que tive ao escrever o texo. Brigadão, amiga. Abrs, é.

Elis Zampieri disse...

Oi Zé, adorei o conto a começar pelo título. Muito sugestivo. A riqueza de detalhes, a simplicidade,a trama conduz o leitor a sair do seu mundo mais próximo e o coloca a meditar sobre sua condição, experimentando com maior profundidade do que lhes oferece sua própria existência, ao mesmo tempo que se transformam em outros, os personagens.
Muito bom!