quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Do lugar onde moram os sonhos


Imagem: Diana Angélica

Te conto agora, porque só agora eu sei.
O que tem atrás daquele morro, mãe? Sei não, menina. Mais morros e bois e fazendas, que é tudo que se tem por aqui. E cidade não tem? Na cidade é que moram os sonhos né mãe? Ah menina...Eu nem sei onde moram os sonhos. Se soubesse, te juro, não estaria mais aqui.
Nos livros moravam os sonhos. Isso ela ja sabia. Mas e o discurso de dona Laura, na formatura - dona Laura era boa nisso - dêem asas aos seus sonhos. E eu vi, nos olhos dela pousaram duas estrelas. Dona Laura sabia onde eles moravam. Sabia sim, que dava pra ver. Mas se sonhos podiam ter asas, porque então, nenhum voara até ali, não havia sonho nenhum ali. Lugar triste lugar sem sonho. Tão pequeno, devia ser isso. Sonhos não cabiam naquele lugar. Sonhos são coisas sempre grandes, e aquela vila, pacata. Quieta que só. Dava até pra ouvir o barulho da grama crescendo. Sonhos nao deviam sequer gostar de lugares assim. Ela também não. E a mãe, coitada. Sempre tão irritada. Era por isso. Passou a vida procurando...Mas dona Laura, sempre morou ali... E as pernas apoiadas na cerca, o corpo no chão, e a cabeça na direção do morro. Fim de tarde. E tem o quarto pra limpar, a louça pra lavar, e tem tanta coisa pra pensar. Irritada, como sempre, a mãe. O pensamento ausente em cada pio de passarinho. Pássaros são livres e sabem a cidade atras do morro. Um dia, um dia ela também saberia..E soube, e lembrou-se do tempo em que um morro apenas, cabia nos seus olhos. No alto, em direção da linha vermelha, onde o sol se escondia. Horizontes. E sonhos. Um lugar que nunca se consegue chegar. E cidades. E morros. Tantos agora...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O arranha-céu

Imagem: Autumn-Stairs Dianne Poinski

O menino que cresceu demais, acompanhou, primeiro da janela de casa e, depois que esta ameaçou desabar, fora dela, o crescimento da pequena cidade chamada de tão-somente Pequena Cidade.
O menino foi percebendo que o seu pequeno mundo, antes parecendo gigantesco, foi diminuindo a cada dia, enquanto a cidade em que o tempo se perdia sem tempo de se achar, foi aumentando a olhos vistos. Mas assim como o amor de pais com seus filhos, que só percebem que estes cresceram quando já são gente feita, o menino só percebeu que a sua Pequena Cidade pequena não era mais a mesma de sua infância perdida, quando após duas décadas distante, para lá retornou...
Muitas das casas da sua rua já não existiam mais, seus amigos já não o reconheciam mais também. Ele era um estranho em sua própria cidade, que cresceu como os filhos distantes dos pais...
Então, o menino que por fora já era homem feito, mas em seu interior não mudara em nada, resolveu ficar ali na sua antiga Pequena Cidade, já não mais tão pequena assim.
De vez em quando algum político quer mudar o nome da cidade, mas a tradição não permite. O povo da Pequena Cidade é muito tradicional, mantém tudo no seus devidos lugares, ainda que quase nada esteja mais nos seus devidos lugares...
O que mais encantou ao menino de volta a sua terra natal, justo na semana em que se comemorava o Natal, foi um enorme prédio erguido onde antes apenas havia uma pequena casa, a casa da sua infância perdida. Para os padrões daquele município que durante muitos anos sequer existira em algum mapa, aquele prédio de vários andares era um quase arranha-céu... Os moradores se revezaram aos fins de semana pra subir lá no alto e ter uma visão panorâmica de toda a região.
Quando o menino, já não mais tão menino assim, viu aquele prédio, resolveu ali morar... Como estava desempregado e tinha poucas economias, pode apenas alugar um pequeno quarto no primeiro andar. A partir de sua admissão numa empresa da cidade, logo seu poder aquisitivo lhe permitiu mudar para um quarto maior, no segundo andar, e assim foi se sucedendo a cada ano na vida do menino que cresceu demais, que bem de vida, foi melhorando de emprego e galgando andar após andar, até que já envelhecido e estabelecido na cidade, foi morar na cobertura do arranha-céu...
Curiosamente, quando lá chegou, tão elevado que estava, seus dedos bem que pareciam arranhar o céu da sua (mo)cidade, e desde que se instalou no melhor apartamento daquele prédio imenso para os padrões da Pequena Cidade, já não tão mais pequena assim, ele desapareceu quase que por encanto... Nunca mais ninguém ouviu falar dele, tornando-se mais uma lenda urbana entre outras mil...
Há quem diga que cada um tem dentro de si um pouco de pequena cidade e outro tanto de arranha-céu... Basta que o(a) menino(a) que existe em cada um não cresça demais e desapareça, além de sua cidade...

Observação: Microconto escrito ao som da canção Notting Better, da banda The Postal Service.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Morrer de Amor.


Nós sabíamos. Há vidas que só fazem sentido aos pares. Assim como duas peças de encaixe perfeito. Simetria. Corações são ímpares. Sozinhos vivem na incompletude.
Mas naquele dia você não voltou. O café à mesa. O chá de maçã com gengibre. O bolo de laranja. E o relógio que ja marcava sete horas. Você nunca voltou. O capim cresceu e sufocou a grama. Era você quem cuidava, o Zé disse que vai limpar, que está criando cobra. As flores sentem a sua falta. Eu juro. Nunca mais tiveram o mesmo viço. O canário morreu também, ficou triste por muitos dias, achei que voltaria a cantar. Quando queria chamar sua atenção ele batia as asas contra a gaiola, tomava um bicada de água e começava a cantar, lembra? Acho que ele morreu de tristeza. E o carteiro, coitado. Não sabia. Carta registrada para o seu Antonio. Seu Antonio, meu filho...o nó na garganta. Acho que ele entendeu. Assina a senhora então. A letra saiu tremida. Os móveis que estava restaurando, está tudo do mesmo jeito, amontoados no canto da garagem. E a missa do domingo, desde que nos casamos. O padre vem em casa, agora. Você voltava cantarolando Deus precisa de ti, muito mais que possas imaginar... Na volta, os biscoitos de polvilho para esperar a visita da tarde. Café amargo Teresa, você vivia a reclamar. Café era doce. Mal sabia você que muito mais amarga é essa saudade que me faz par desde que partiu. Saudade, solidão e eu, e esse vestido pra bordar. Eles eram tão lindos e quando terminava, antes de entregar eu tirava foto. Tão sem graça agora. E eu que te dizia que morria de amor. Tolice. Eu vivia de amor. Morro agora. Solidão não é quando a gente perde o outro. É quando a gente se perde da gente porque o outro é tão a gente que não se sabe mais quem partiu e quem ficou.