domingo, 30 de maio de 2010

O (Des)Encanto

Imagem: José Boldt

Se havia algo naquele reino desencantado que jamais fora perdoado era o fato de alguém expressar o Amor fora dos dias, horas e locais expressamente determinados pelo cerimonial real.
Num lindo dia de sol sem igual, dois jovens que jamais se viram antes, de repente, tornaram-se amantes para toda a vida, a partir daquele mágico instante.
O rei velhaco - induzido pela rainha doida, que nas horas vagas transfigurava-se na bruxa Malamada -, condenou o belo casal a maldição: viverem pra sempre sem se tocar mais.
Com o cruel estratagema, a rainha, travestida de bruxa, decretou que somente poderiam tornar a se reencontrar no dia que os dois dessem de novo às mãos, algo improvável de acontecer.
Literalmente o moço e a moça foram plantados pelos soldados, cada qual de um dos lados da estrada, naquele terreno envolvido em um estranho pântano. Logo, ali enterrados até a cintura, naquele misterioso musgo que foi adentrando seus pés e pernas, criando raízes e cascas em torno do corpo dos dois, um silênio sepucral se fez.
Plantados na estrada que levava do bosque ao castelo, a maldição dos jovens amantes serviu de lição e medo aos demais que ousassem a descumprir as ordens reais. Nunca mais naquele reino se amou de tal forma enraizada.
Os dois foram condenados a viver tão próximos, mas plantados distantes um do outro. Passaram-se décadas, séculos, e as árvores resistiram ali, próximas uma da outra, crescendo, criando galhos e mais galhos, rumo ao céu. Muitos jovens estiveram por ali, nos séculos que se seguiram, amarrando cordas para balanços, usando facas para desenhar seus nomes dentro de um coração. Quando o corte era profundo, ao invés de seiva, corria um pequeno filete de sangue, e os novos amantes saiam horrorizados com a cena.
A estrada de chão batido tornou-se com o tempo de saibro, depois de pedra, por fim, de asfalto. A vila e o reino tornaram-se uma mega cidade, e aquele pequeno caminho, continuou lá, preservado na memória, por questões históricas e patrimoniais, com as duas árvores prostradas, enraizadas, quase entortadas diante do peso dos séculos e mais séculos, até que os seus galhos, dia a dia foram se aproximando, até se tocarem, e se tocando algo maravilhoso aconteceu: a maldição fora quebrada e os dois amantes, ainda com a aparência de antes, conservada por musgos, seivas e líquens, tornaram a viver, serem de novo humanos, até banharem-se na lagoa ali próxima.
Os dois se reconheceram de imediato, se abraçaram de forma voraz, voltando a se amar como gente. Mas a cidade, de repente, ficou num silencio ensurdecedor, nem mesmo os pássaros cantavam mais, todos revoaram para além mais.
Enquanto o moço e a moça, sempre de mãos dadas, passaram a refazer seu caminho do bosque ao castelo, agora um grande arranha-céu. A cada esquina foram surgindo do nada árvores enraizadas no meio da rua, das calçadas e dos carros, dentro e fora dos prédios, no meio das salas, dos quartos, algumas de pé, outras tombadas em estranhas posições...
Nenhum ser vivo de carne e osso, além dos dois, fora visto pelos arredores do reino desencantado, somente árvores e mais árvores, enraizadas em sua vidinha comum, de forma secular. Do lado do arranha-céu tinha uma pequena casa que resistia ao tempo e foi por ali que o moço e a moça, ainda apaixonados, resolveram de novo entrelaçar suas vidas, para nunca mais se distanciarem ainda que tão próximos...

2 comentários:

Elis Zampieri disse...

A que bela história a imagem te remeteu. Muito bom, Zé.
Bjo.

José Antonio Klaes Roig disse...

Oi, Elis, bela imagem também a que achasses. Visses a que coloquei no ControlVerso? A imagem que me inspirou esse texto? Uma imagem, um insight. Um abração,