sábado, 18 de setembro de 2010

O passageiro das quatro estações

(Autoria da imagem desconhecida)


Quando a moça adentrou no portal,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Também sabia que não poderia amá-la por si só. Talvez,pelo fato de que a vida imite sem jeito o sonho;e o sonhar talvez seja como reacomodar o viver em sentido contrário! E o moço,meio que a contragosto,fez de conta que não entendia os sinais,deixando ao Mágico Tempo decifrar seus próprios enigmas. Viver é escrever o próprio destino,além das próprias palavras.E o moço vazio de si bem sabia que o mundo era bem maior que isso. As palavras possuem vida própria,mas nem tudo elas podem contar.Entre o segredo e o degredo há às vezes grande interrogação.
O moço,passageiro do próprio destino,num desatino,desceu naquela misteriosa estação,sem malas nem itinerário,atrás daquela moça. Não era aquele o seu caminho,ele sabia,até descobrir que nada sabia,nem de si mesmo.Sua bússola sentimental é que o guiou até ali.
Naquela estação,como um estranho portal,o coração do moço sentiu o tempo rodopiar em falso,feito redemoinho sem explicação. Naquele mundo,um segundo era um montão.A moça era soberana de seus sonhos,e o trem,que ía e vinha,tinha a sua própria missão.
O destino os aproximou,destinados estavam a se cruzar naquela estação,ainda que estivessem noutra estação interior ao desembarcar. Quando ele a viu primeiro,e ela nem notou,ele sabia,depois lhe contou,que tinha certeza de conhecê-la,mesmo diante do improvável. Inimaginável é passar por essa vida com a bússola errante,passando diante do seu Norte magnético,com pressa,sem o reconhecer.
Mas o destino mostrou-lhe que aquela viagem(e desembarque)era apenas de passagem.Em apenas uma imagem,toda uma outra vida pode ver. Nem tudo que se vê,se crê.Nem tudo que se crê,se vê.Ele,que nem sabia de sua existência,intuía que um dia iria,enfim,conhecê-la.
E naquele instante,diante da moça de seus sonhos,ele tornou-se quase imortal,recuperando em parte suas recordações. Lembrou-se da primeira estação,quando era ainda verão,e o calor da primeira paixão o fizera soldado fiel daquela bela rainha. Naquele tempo distante,ele soldado errante,morrera literalmente de amor,guerreando pelo reino encantado em que a moça era soberana. Recordara também da segunda estação,quando as flores caíam sem parar,e que sempre chegava atrasado para conhecer seu grande amor. Nela,ele era escravo fugitivo,e a moça liberta,uma defensora da liberdade,igualdade e fraternidade.Ele perdera a cabeça,ela não.
Depois que o destino joga os seus dados,tudo está fadado a acontecer conforme a soma dos quadrados,o moço sabia muito bem. Depois que o amor joga os seus invisíveis dardos,nem tudo é tão certeiro,visto que o alvo é sempre móvel,e a vida tão passageira. Na terceira estação,frio,vento,chuva,encaixaram-se como luva no ânimo do poeta,que mais uma vez chegou atrasado ao encontro marcado.
Quando o moço reencontrou a mesma mulher das demais estações,ela estava destinada a outro,e ele resignou-se com aquele desencontro. Foi na quarta estação,a das flores,enfim,quando ele ali desceu,sempre sem destino,que um mundo novo se descortinou ao seu redor. Na última estação,o moço pode recordar de todas as demais.E o tempo recomeçou a girar os grãos de sua imensa ampulheta mágica.
E o moço,até então de olhos bem abertos,sonhando acordado,na verdade foi despertado pelo apito de um trem,vindo sabe-se lá de onde. Desperto do transe,o passageiro das quatro estações,indagou-se sobre a possibilidade de existir vida sem sonho n'algum outro lugar. Sentado no meio da estação,solitário em plena multidão,pensou se quando se perde o sonho perde-se também o sono e algo mais. De olhos bem abertos,o moço custou a acreditar no que via:diante dele,a mulher dos seus sonhos se materializara num pestanejar. O passageiro viajara pelas quatro estações,ora subvertendo a lógica do tempo,ora subtraindo dos dias aquela imensa saudade.
Ele a conhecia,desde sempre,eternamente;ela é que o estava conhecendo apenas naquele instante em que o sonho imitou a realidade. Ele olhou para ela como quem retorna de longa viagem,sentindo-se em casa como se nunca tivesse sido habitado antes por aquela visão. A moça do brinco dourado,de pé naquela estação,viu um mar de rostos sem expressão - todos vagando apressados -,fixando-se em um só.
De mundos diversos:um sem mala alguma;outra com a bagagem pesada demais,como quem carrega pedras ou deseja por uma sobre algo. O moço sem nome ofereceu à moça de seus sonhos ajuda para carregar as malas,sem se importar com o destino daquele trem das onze. Ela reconheceu nele o reflexo de um amigo distante - passageiro de um tempo errante - que não soube bem precisar,até o trem apitar.
O tempo possui três dimensões entrecruzadas: o sonho,o segredo e a vida.O destino possui também três: a amizade,a paixão e o amor. A cada reviver,o passageiro nem sempre dá-se conta de em qual dimensão poderá desembarcar,carregando apenas a bagagem interior.
Depois de vagar pelas quatro estações,ele enfim chegou adiantado,aguardando pela chegada da moça do brinco dourado,naquela estação. Naquele instante único,passado,presente e futuro brincaram de rosa dos ventos na mente do passageiro,condutor do próprio destino. Nas três estações anteriores,ele tinha confundido as placas com outra sinalização,descendo bem antes ou muito depois da moça.
A viagem era longa e a esperança do reencontro mais longa ainda.O passageiro já temia que a viagem fosse apenas em sua imaginação. Passou a duvidar do que vivia (não do que sentia) e da possibilidade que nutria de viajar no tempo;daquele amor torná-lo imortal. Ah,o amor!Não é flor delicada que se colha na primeira estação.Os céticos dirão que tudo não passa de coisa de poeta,de sonhador.
A moça,desconhecendo a jura secreta do moço,vagando pelos corredores do tempo,convidou-o para sentar-se ao seu lado no trem lotado. Lado a lado,Solitário e Solidão olharam-se ao seu modo.Ele confiava no tempo e no amor;ela desfiava seu novelo,fiando suas memórias. A moça reconhecera no ilustre desconhecido,um passageiro dos seus sonhos perdidos,um conhecido que retornava de viagem sem avisar. Todo encontro às vezes é um reecontro às avessas,promessa de vida,quando duas pessoas por acaso,despem-se do corpo e vestem a alma. Desconfiavam que nada é por acaso,nem mesmo o acaso,quando se encontraram naquela derradeira estação e embarcaram naquele trem.
Ele recusava-se a viver outra viagem sem poder amar dessa vez de fato,ainda que o Amor parecesse uma palavra quase sobrenatural. Sem aquela procura e sentimento agregado àquela moça,sua imortalidade era banal.E sem aquele encanto,o passageiro era reles mortal. O moço temia que se o amor verdadeiro,de fato não existisse,a vida seria grande prisão a céu aberto,o que faria dele um fugitivo.
Sua pequena imortalidade vagava no sentido inverso de sua imensa felicidade,que seguia junto à moça,naqueles trilhos e dormentes. Metade dos passageiros dormia de olhos fechados,a outra metade de olhos abertos.Os únicos acordados eram ele, ela e o maquinista.
Diante do óbvio,de que o Amor nos possui,mas nem sempre possuímos o Amar,o passageiro percebeu,enfim,que não precisava mais voltar. Aquela era a sua última e longa viagem,tinha perdido pelo caminho parte da inocência e imortalidade,mas era preciso seguir adiante. Enquanto a moça tricotava suas memórias,ele,sentado ao seu lado,pensava que o Amor é em parte uma viagem interior,uma idealização.
Todo passageiro das quatro estações nunca sabe ao certo o que se passa além do mundo exterior,dentro do mundo particular da amada. Mesmo assim,tudo que é verdadeiro lembra chama: alimentada deve estar para que possa alimentar também o sonhar e o amar de cada um.
A viagem se completa,por sorte,quando o passageiro encontra ao seu lado,mais que a companheira de viagem,além do meio de transporte. A viagem era longa e os demais estavam sonolentos.O moço teria dessa vez tempo de sobra para estar com a amada de outras estações. Aquela seria,com certeza,a sua última viagem,independente do que acontecesse pelo caminho com seu Amor e o seu Amar,isso ele sabia. O passageiro das quatro estações abdicaria de sua imortalidade infecunda,para fecundar na vida comum daquela moça,outra esperança. Quando a moça subiu naquele trem,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Mas também sabia que não poderia amá-la por si só.