quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Sobretudo





Ligia eu conheci voltando de Diamantina. História interessante. Viveu na Índia por algum tempo  e foi pra lá à procura do fio que liga as coisas. Que amarra os por quês, os para ques e os como. Do fio que faz entender o que chamam de sentido, significado, razão ou coisa semelhante. 

 Até o dia em que percebeu que é preciso aceitar o silêncio quando vem. E num dia, sem procurar descobriu. O sentido era dar sentido. 

Viver é dar sentido. Na Índia ou em qualquer que seja o lugar. 

Ligia trabalha agora no setor de queimados. Pinta a cara de tinta e usa nariz de palhaço. As vezes segura firme o choro enquanto vai tecendo histórias de riso.

Observação: Imagem acima extraída da internet, endereço abaixo http://sissisideas.blogspot.com.br/2009/11/fio-do-novelo.html

sábado, 26 de novembro de 2011

Outra



Dos dias que começavam cedo, gostava de abrir janelas, desempoeirar os tapetes, deixar que o resto de sol que se desviava dos prédios, entrasse por entre a janela grande da sala. Os raios desenhavam sombras no chão.  No  quarto dos fundos, algumas coisas dele ainda permanceciam lá. Não sabia ao certo porquê.  É provavel que os amantes se despeçam assim, aos poucos, porque insista neles alguma espera, alguma lembrança ou saudade. As vezes escolhe-se sofrer devagar. Truque apenas,  para se continuar vivendo. Havia ainda a asa quebrada. Havia ainda uma leve tristeza e um algo que pendia da asa quebrada. Era inútil a tentativa de alinha-la ao corpo, as vezes. Mas agradecia pela memória pouca que vinha aperfeiçoando. Nunca pensara que isso lhe serviria um dia. E da janela,  via o mundo, e da janela vê-se o que se quer. Entendia enfim, que a realidade não é algo estático. Suas lentes agora refletiam a mobilidade. A mobilidade que só enxerga quem quer, e que sabe que depois da janela e dos prédios e das coisas todas do mundo, no fim ou no começo de tudo, deve haver alguma coisa, e a simples desconfiança, abre todas as janelas. E o resto de sol, procure as frestas, os cantos, os buracos, e devagar ocupe a sala, o quarto. E não é de fora que se vê, é de dentro. E por que olhar de longe, se pode descobrir de uma vez por todas, que de perto ja é outra?


Observação: Imagem extraída deste endereço
http://umacancaoedipiana.blogspot.com/2010_11_01_archive.html

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Umbigo

 [Imagem de autoria desconhecida]

-Mãe! disse ele. Quando eu sento meu umbigo some!
Ao que ela concluiiu: O problema do mundo é que permanecem, as pessoas demasiado tempo em pé!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Silêncio


(imagem do Flickr)

Eu só fico quieta quando quero ouvir um recado. Não que eu não saiba, também não é que eu tenha pressa. Ganhei um par de sapatos novos e dei de pisar com mais cuidado e de caminhar um andar mais atento.  Mas tem dia que silêncio incomoda. Dia que silêncio incomoda é dia que a gente escuta o vento que faz música entre o beiral e a fresta da janela e a quietude vira coisa que a cabeça quase esqueceu, mas por descuido foi largada num lugar qualquer, ficou à vista. Aí ja viu! Bem falava minha mãe... A tivesse ouvido e teria aprendido a separar lembranças. Algumas eu largaria no fundo da gaveta, onde só se mexe quando a gente precisa rever a chuva que ja mofou as palavras, nem que vez por outra eu desse de cara com a minha covardia. Minha casa é ficar quieto, mas tem dias que o barulho do mundo faz falta. Barulho do mundo é quando a vida pisca no semáforo, e tem gente cruzando a avenida, e criança correndo atras da felicidade, porque o amigo chutou muito forte. Quando eu descobri o barulho do mundo não quis mais saber do silêncio, desses, que viram dor e abraçam o peito. Quando eu nasci, eu descobri uma cidade chamada Silêncio. Seis horas da tarde tudo parava. E a quietude se espichava até o dia seguinte quando os galos, acordavam o silêncio e Silêncio acordava. Mas nem acordada fazia barulho. Silêncio era uma pausa bem comprida. Se não fossem os galos e dona Nenê que vendia doces de coco logo cedinho e tinha voz alta e batia de porta em porta, perigava de Silêncio passar o dia dormindo. Foi lá que eu vivi até a mocidade. Foi quando eu achei que felicidade devia ser uma coisa bonita que fazia barullho. Agora, quando vira outra vez silêncio eu aproveito para ir colocando umas palavras. Sempre gosto mais das palavras que dá pra gente escrever quieto. Quando vou no mundo é tanta coisa, que nem lembro. Agora eu ja me acostumei dessas coisas sem serventia e se o vento bate na janela, eu ja nem ligo mais, eu vivo mesmo é de emendar saudades!

Observação: Imagem acima, extraída do endereço abaixo
http://farm4.static.flickr.com/3194/2941879935_024054b1ce_m.jpg

domingo, 24 de janeiro de 2010

Palavras Roubadas


("Menina da boina verde" , Mily Possoz, 1930)

E depois fiquei ali, sem desgrudar os olhos do chão.
Era uma menina. E só. O decote nem tinha sentido. A blusa era bonita. E só. Mas o pai insistia em achar que tinha... e aqueles olhos que sempre falavam. Mania que o pai tinha... com a boca sempre tão pouco. E aquele calafrio na espinha que teimosamamente subia em direção ao pescoço sempre que isso acontecia. Como faca, cortante.
O silêncio. E só.
Os olhos então passeando rápido sobre as peças alinhadas milimetricamente pela mãe. Melhor não contrariar. Melhor. Sempre assim.
Se pelo menos falasse, se pelo menos me contasse uma história. Ou então, se já percebesse que não era mais sua menina de contar histórias na cama, dos dias que o mau tempo lhe prendia dentro de casa e que a chuva fazia uma poça debaixo da janela e eu ria quando dizia que era a tristeza de Deus, e os rios, mãos que represavam suas lágrimas, que me perguntasse sobre o menino que jogou flores pela janela do quarto, e do livro que eu escolhi para guardar a lembrança.
Os olhos que falavam. E só. E eu que nem sempre entendia. Dialeto difícil o do pai, as vezes.
O cobertor cobrindo o corpo, como o abraço do pai. Apertado. Ausente. Oito horas. O relógio da igreja anunciava.
O chão, os vincos desenhados sobre a madeira. O silêncio. E só.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Do lugar onde moram os sonhos


Imagem: Diana Angélica

Te conto agora, porque só agora eu sei.
O que tem atrás daquele morro, mãe? Sei não, menina. Mais morros e bois e fazendas, que é tudo que se tem por aqui. E cidade não tem? Na cidade é que moram os sonhos né mãe? Ah menina...Eu nem sei onde moram os sonhos. Se soubesse, te juro, não estaria mais aqui.
Nos livros moravam os sonhos. Isso ela ja sabia. Mas e o discurso de dona Laura, na formatura - dona Laura era boa nisso - dêem asas aos seus sonhos. E eu vi, nos olhos dela pousaram duas estrelas. Dona Laura sabia onde eles moravam. Sabia sim, que dava pra ver. Mas se sonhos podiam ter asas, porque então, nenhum voara até ali, não havia sonho nenhum ali. Lugar triste lugar sem sonho. Tão pequeno, devia ser isso. Sonhos não cabiam naquele lugar. Sonhos são coisas sempre grandes, e aquela vila, pacata. Quieta que só. Dava até pra ouvir o barulho da grama crescendo. Sonhos nao deviam sequer gostar de lugares assim. Ela também não. E a mãe, coitada. Sempre tão irritada. Era por isso. Passou a vida procurando...Mas dona Laura, sempre morou ali... E as pernas apoiadas na cerca, o corpo no chão, e a cabeça na direção do morro. Fim de tarde. E tem o quarto pra limpar, a louça pra lavar, e tem tanta coisa pra pensar. Irritada, como sempre, a mãe. O pensamento ausente em cada pio de passarinho. Pássaros são livres e sabem a cidade atras do morro. Um dia, um dia ela também saberia..E soube, e lembrou-se do tempo em que um morro apenas, cabia nos seus olhos. No alto, em direção da linha vermelha, onde o sol se escondia. Horizontes. E sonhos. Um lugar que nunca se consegue chegar. E cidades. E morros. Tantos agora...

domingo, 20 de dezembro de 2009

Morrer de Amor.


Nós sabíamos. Há vidas que só fazem sentido aos pares. Assim como duas peças de encaixe perfeito. Simetria. Corações são ímpares. Sozinhos vivem na incompletude.
Mas naquele dia você não voltou. O café à mesa. O chá de maçã com gengibre. O bolo de laranja. E o relógio que ja marcava sete horas. Você nunca voltou. O capim cresceu e sufocou a grama. Era você quem cuidava, o Zé disse que vai limpar, que está criando cobra. As flores sentem a sua falta. Eu juro. Nunca mais tiveram o mesmo viço. O canário morreu também, ficou triste por muitos dias, achei que voltaria a cantar. Quando queria chamar sua atenção ele batia as asas contra a gaiola, tomava um bicada de água e começava a cantar, lembra? Acho que ele morreu de tristeza. E o carteiro, coitado. Não sabia. Carta registrada para o seu Antonio. Seu Antonio, meu filho...o nó na garganta. Acho que ele entendeu. Assina a senhora então. A letra saiu tremida. Os móveis que estava restaurando, está tudo do mesmo jeito, amontoados no canto da garagem. E a missa do domingo, desde que nos casamos. O padre vem em casa, agora. Você voltava cantarolando Deus precisa de ti, muito mais que possas imaginar... Na volta, os biscoitos de polvilho para esperar a visita da tarde. Café amargo Teresa, você vivia a reclamar. Café era doce. Mal sabia você que muito mais amarga é essa saudade que me faz par desde que partiu. Saudade, solidão e eu, e esse vestido pra bordar. Eles eram tão lindos e quando terminava, antes de entregar eu tirava foto. Tão sem graça agora. E eu que te dizia que morria de amor. Tolice. Eu vivia de amor. Morro agora. Solidão não é quando a gente perde o outro. É quando a gente se perde da gente porque o outro é tão a gente que não se sabe mais quem partiu e quem ficou.

domingo, 20 de setembro de 2009

(Des)contando os dias


Ilustração: Issi Soizic

Dona Norma eu encontrei dia desses, estava indo para a festa de São Sebastião. Morávamos na mesma vila. Dona Norma é daquelas pessoas que não envelhecem nunca. É uma jovem de oitenta e seis anos, sempre faceira. Conserva ainda a mesma feição de quando a conheci. Bengala? Que nada. Anda a passos firmes, coluna bem reta, fala alto e forte. Usa uns colares bem grandes e brincos coloridos. Pinta o rosto e usa batom pouco discreto. "Passar da idade, minha filha...isso não existe" ela me explica. Só tem uma coisa que deixa dona Norma um pouco quieta. É o filho que mora tão longe. "Porque saudade Elisangela, é uma alegria que dói."

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nunca mais


Imagem: http://miniminimos.blogspot.com

Ela estava certa disso: Nunca mais viveria aquilo outra vez.
Ele explicou: Bom, eu acho nunca mais uma palavra forte demais para ser dita.
Ela achou que entendeu: Ta bom! Nunca mais falo.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Dois pra lá, dois pra cá


Imagem: Benjamin Lacombe

E era pela janela que os olhos miúdos sonhavam. Ajoelhada aos pés da cama quase encostada sobre a abertura retangular protegida pela rigidez do vidro, ela acompanhava o movimento das pessoas do lado de fora. Ouvia a música também. Era dia de baile. Ela gostava de baile. Mas tinha sete anos. E meninas de sete anos não vão a bailes - o pai dizia. Ela fora, uma única vez.
Gostava de acompanhar o ritual em que o rapaz um pouco tímido tentava encontrar entre as inúmeras moças presentes a que lhe faria par naquela dança. Corria os olhos pelo salão até que finalmente encontrava. Tomava um gole de uma bebida qualquer, talvez para ganhar coragem e finalmente dirigia-se à ela. Estendia-lhe a mão, ela sorria enquanto era conduzida ao centro do salão e dançavam lindamente, as vezes a noite toda.
As palmas a trouxeram de volta. O pai havia cumprido a promessa. Um lindo baile quando completasse quinze anos. O moço não ficou tímido quando a tirara pra dançar. Fora contratado pelo pai. Dançariam três músicas, nem uma a mais pra não atrasar o rapaz, a primeira, uma valsa. Estava tudo preparado: a hora, os passos, o olhar, o sorriso, até o beijo. Coisa sem graça - ela pensou, enquanto a música começava a tocar. Eram dois prá lá, dois pra cá.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Papéis

Imagem: colagem de José Roig


Como de costume veio receber o dono no portão de casa. Bem sabia o cão distinguir os cheiros. Abanou o rabo e se contentou com o afago ligeiro.
Tardava mais um dia e o cansaço lhe tomava o corpo, afinal foram oito horas entre dez da manhã e seis da tarde recolhendo papéis. Setenta quilos naquele dia, nada mal para uma quarta feira. O montante do dinheiro reunido com o saldo da semana anterior, devia ser suficiente para pagar a conta da venda e ainda comprar presente para o filho que completava anos no domingo.
Sentou-se no banco de madeira bruta em frente ao fogão de lenha. O fogo aquecia a casa e a labuta diária, seus sonhos.
No caderno de contar a vida algumas páginas tingidas a nanquim. Nenhuma no entanto, que não tivesse alguns pingos coloridos a equilibrar os tons.
Assim a vida lhe parecia, assim lhe era. Papéis. Alguns tantos que lhe enchiam o carrinho. Outros tantos que via representados, assim como num espetáculo de marionetes ou em um teatro de sombras. Amassados, rabiscados, em branco, recortados, apagados. A encher pastas, gavetas, armários, peitos e almas.
A convicção da missão cumprida, da dignidade de ter lutado por mais um dia e a certeza de que tudo que lhe era caro estava no seu lugar.
Dormiria o que chamam de o sono dos justos até que o galo viesse a cantar. Até que o sol despontasse no beiral, até que ouvisse do fim da rua a voz do Chico, o velho companheiro a gritar:
_Papel, garrafa, latinha!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Menino Francisco


Menino Francisco rabiscou uma flor no papel.
_Que é isso menino, flor marrom com folhas azuis?
E a mãe, hábil manipuladora de borrachas apagou o desenho de Francisco e ensinou-lhe o que lhe parecia óbvio:
_Menino tolo, não sabe que flores são vermelhas com folhas verdes?
Menino Francisco aprendeu logo a lição. Passava os dias que lhe escorriam lentos, a desenhar flores vermelhas com folhas verdes. Muitas delas...
Menino Francisco cresceu. Arrumou emprego numa fotocopiadora. Acostumou-se logo a aceitar a rotina das pilhas de papéis à sua frente, cumprimentar os clientes que não raras vezes também eram as mesmas caras, apertar o botão e cobrar alguns centavos pelo trabalho.
Nas horas vagas o moço Francisco dedicava-se à seu passatempo preferido. Pintar telas... Flores vermelhas com folhas verdes.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A indiazinha


E a velha adentrou ao recinto puxando pela mão a menina. Olhos pretos e espertos, mirou-me de canto ameaçando um sorriso acanhado.
_É uma indiazinha, coitadinha! Está a vender colares!
_Dá um abraço no tio!
_Olha que lindos!
O tio enfia as mãos no bolso e estende uma nota amassada, enquanto a velha cata algumas sobras do almoço imaginando que pelo avançado da hora, deva estar com fome.
A pequena de olhos pretos sorri. Sorrio também enquanto observo-a. Enquanto come, os olhos procuram por algo que não sei o que é. Ela balança os pés, calçados com um chinelo bem maior que eles. Parece uma senhorinha. Saia comprida, a blusa rota e um colar pendurado ao pescoço, como os que traz no balaio de fibras, abraçado à cintura.
_Ah coitadinha! Estava com fome.
A velha parece querer redimir-se pelos quinhentos anos de exploração. Toma o balaio que a menina mantem ao lado da cadeira e vai oferecendo aos que estão por ali, enquanto repete:
_É uma indiazinha!
De repente a pequena recolhe as sobras em uma sacola e sai em silêncio em direção à porta. Apenas um levantar de olhos e novamente o mesmo sorrisinho ligeiro.
Do lado de fora, sentada à sombra está a mãe amamentando o filho de colo.
A velha alcança a menina, segurando-a pelo ombro e apontando para a igreja há alguns metros de distância:
_Ta vendo aquela imagem? É a padroeira de vocês. Diz pra mãe rezar pra ela.
Nem matas, nem ocas, nem pajé, nem nada do que os livros grossos ou os professores contaram. O relógio apontava quatro horas da tarde e na terceira badalada do sino mãe e filha índias adentravam a igreja. Lá dentro um hino à padroeira.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Olhar Implacável


(Tela de Pablo Picasso)

Cruzou com ela hora qualquer do dia. Tinha muito tempo que não a observava com atenção. Mirou-a, frente e verso, não aprovou o que viu. Estava um bocado abatida, e aquelas olheiras então! Havia engordado também. Os cabelos brancos insistiam em denunciar seu auto-descaso. Que desleixo! Tinha o olhar vazio, sem brilho e algumas rugas precoces.

Já fora mais feliz. A vida que já fora mais generosa com ela, agora parecia esvair-se fazendo-a parecer estranhamente inanimada. Espantou os pensamentos piedosos. Não gostava deles.

_ Reage menina!!! - Pensou com seus botões - Tão jovem ainda!

E que peso parecia carregar sobre aqueles ombros que pendiam para frente como se sobre eles descansasse o mundo.

Não era feia, mas os traços delicados se encondiam agora sobre as sombrancelhas esguias que quase se encontravam sobre o vinco fundo formado entre o vão dos olhos. Tinha apenas trinta e dois anos, mas aparentava quarenta - para ser generosa com ela.

_Para de pensar bobagem e vai cuidar da sua vida!
Era isso mesmo que ia fazer. Cuidar da vida. Afinal sabia quanto os espelhos eram cruéis e o quanto as coisas desta vida eram passageiras.

Olhou para fora e para dentro dizendo para si mesma o que ela, previdente e parcimoniosa julgava saber de tempo.

_Sossega criatura, você já morreu tantas vezes que já devia estar acostumada.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Lógica de criança


No telefone:
_Filho, como é mesmo o nome do seu dentista? Aquele que ficava perto da escola, o último que te levei... Vou indicar à mãe do Beto.
_ Ah! Aquele que ligou aqui em casa semana passada?
_ Esse. Esse mesmo!
_ Hum... é que ele não falou o nome não. Acho que era o fulano de(n)tal.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Sobre Flores e Jardins


(Foto de Maria Fernanda P. Barreira, do Flickr)

Dirijo-me para o canteiro colorido monocromaticamente pelo amarelo das sempre vivas, descansando meus olhos sobres elas.
Quando criança inquietava-me o fato de as sempre vivas não morrerem.
Hoje compreendo. Elas morrem, mas insistem em manter algumas de suas características vivas como a cor, por muito tempo e apesar da textura seca e do pouco viço, confundem-se facilmente com outras espécies vegetais vivas.
Não são portanto, sempre vivas, são mortas-vivas que à exemplo de algumas espécies racionais desistem de si mesmas, abandonam-se, morrem vivos... Perdem o viço, o brilho, a energia, o desejo, o lirismo.
Trabalham, andam, conversam e se comportam como robôs pré programados desprovidos de prazer, euforia ou entusiasmo. Ora, uma obrigação de quem está vivo. Mantêm a estrutura e sofrem de falência interna.
Sempre vivas são flores artificiais. Ao contrário destas, algumas espécies sabem que precisam morrer verdadeiramente infinitas vezes para tornar-se vida. Assim, não retardam esse momento.
No jardim da casa de minha mãe, havia uma flor, chamada onze horas. Durante a maior parte do tempo mantinha-se fechada, parecendo morta. Mas quando o sol atingia o auge de sua intensidade, desabrochava todo seu encanto, perfume e beleza. Morria e renascia um pouco a cada dia.
Acho que quando Deus criou o mundo desejou um grande canteiro de onze horas. Mas no meio delas, assim como ervas daninhas que nascem sem ninguem semear, germinaram sempre vivas. Um dia, talvez elas entendam que precisam assumir a morte, para transcenderem.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A Cigana

(Foto de Carlos Bacha.)

Cercada de mistérios, deusa cigana, detentora dos segredos e conhecedora dos enigmas das linhas encravadas nas mãos. Sábia e assertiva, dominava os saberes ocultos, orientando os que desvendavam seus poderes.
Revelava-se verdadeiramente à poucos. Aos que tinham olhos e ouvidos atentos; mente e coração receptivos.
Era na imensidão - lago que dava vazão aos olhares perdidos - que revelava sua face e descortinava os caminhos.
Foi no compasso de duas luas, uma cheia, outra minguante que surgira.
Foi um olhar único de uma só inteireza que revelara-lhe a cigana, aquela que lhe daria as respostas há tanto procuradas.
Um único mistério ainda pairava no ar. Da imagem dual, mal definida, surgia uma sombra que impedia visualizar-lhe o rosto. Sua identidade mantinha-se ainda em segredo.
Mas eis que o sol acariciando a areia da praia fez dissiparem-se as trevas. A imagem da cigana sumindo ao longe, confundindo-se à linha do horizonte. Na areia com letras douradas pelo sol, a cigana revelara seu nome, seu último segredo: INTUIÇÃO

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O primeiro cadáver do Azevedo


O suor escorria-lhe a face, as mãos ainda trêmulas, a respiração arquejante. Era seu primeiro, mas sabia, não seria o único. O desejo manisfestara-se incontrolavelmente tentador. Nenhum sentimento de culpa. Era prazer o que sentia. As mãos quentes sujas de sangue contrastando com o álgido corpo delgado que jazia em sua frente. O líquido viscoso escorrendo formara uma poça sobre o piso branco de linhas perpendiculares.

A sala de pintura sóbria, a cortina preta, o compartimento escuro... Pelas frestas da parede, alguns poucos raios do sol que já ameaçava se por, iluminavam de maneira desuniforme o local.

Olhou para os lados certificando-se de que ninguém testemunhava o ato. Eram três. Ele, o cadáver, e um silêncio absurdo transbordando no vácuo, interrompido apenas pelo som das batidas do martelo.

Ajeitou-o com cuidado sobre a mesa. Os olhos fechados, o cabelo arrumado, a pele limpa com um chumaço de algodão. E um ritual cumprido.

Olhou para o corpo inerte. Lembrou da promessa feita ao pai pouco antes de sua morte. Seria advogado.

Ele haveria de entender. Afinal herdara dele próprio esse gosto. Seria mais um Azevedo, agente funerário.

sábado, 10 de janeiro de 2009

(R)evolução



Ano:2050

Planeta: Terra

A genialidade humana faz o mundo chegar ao ápice da sua evolução tecnológica e científica. Ao mesmo tempo, humanos passam por um estranho fenômeno. São aos poucos transformados em corpos solidificados em ferro e fibra. O fenômeno, a princípio imperceptível, tem como principais sintomas a diminuição das sensações e dos sentimentos. Atinge inicialmente o coração que passa por um processo de endurecimento gradativo até petrificar-se completamente e assim, outros órgãos vão sendo atingidos pelo fenômeno. Em pouco tempo, o corpo ganha formas compactas, muito semelhante à das máquinas. Homens-máquina são criados aos milhões todos os dias, principalmente nas grandes metrópoles.

Fruto de sua extraordinária inteligência e da iminente necessidade de apoio às suas tarefas, cada vez mais amplas e difusas, passam a criar robôs dotados de “qualidades humanas”.

Assim, passam a conviver civilizadamente, homens robotizados e robôs humanizados.

Mas os cientistas alertam para o surgimento de uma nova espécie já encontrada em algumas partes do planeta. Denominada pelos estudiosos como Homo Conscientes, a nova espécie tem formas físicas muito parecidas às do Homo Racionales, difere-se no entanto, no uso consciente da sua inteligência.

Creio que estes não necessitem criar robôs à sua imagem e semelhança.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Colcha de Retalhos


Despejou seu corpo arfante sobre a cama enquanto pensava em cada uma das formas coloridas que entremeavam a colcha já antiga e desbotada que descansava sobre ela. Fora colecionando pedaços que ganhara. Cada um guardava uma história. Histórias de muitos, alguns que nem mesmo conhecera, outros que já não recordava o nome.
Mas já não suportava encobrir-se com ela. Divagou em pensamentos, cochilou...
Um vento vigoroso adentrou à janela desamarrando os fios que uniam cada parte da colcha que lentamente se desfazia no ar e sumia no horizonte.
Fora tomada, de súbito por uma sensação de leveza indescritível. Sorriu, voltando o olhar para a cama nua. Sobre ela repousava agora, apenas um novelo de lã e um par de agulhas.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Um caso Gramatical


Ele, sujeito simples
Artigo bem definido
Fazia um gênero assim, primitivo.
Ela, monossilábica solidão.
Procurando seu verbo de ligação.
Se encontraram, deu-se a conjunção.
Ela átona
Ele, um hiato silencioso
Mas era fato, estava posto
Mera análise sintática
Do seus pretéritos tão imperfeitos
Para o seus períodos compostos.

(...)

E o futuro
Estava escrito
E nas letras
A explicação
Da semântica existencial
Uma aliança selada
Um complemento nominal.
Por amor e concordância
E não havendo nada a mais
Uniram em cerimônia
suas sílabas bilabiais.
E seguem assim, juntos
Para o verbo amar
Até o infinito conjugar.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Rápido movimento do olhar - O blog


O que é R.E.M.?
Além de nome de banda de rock norte-americana, segundo a wikipédia é:

"O sono R.E.M., ou Rapid Eye Movement (Movimento rápido dos olhos), é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos. Durante esta fase, os olhos movem-se rapidamente e a actividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado. As pessoas acordadas durante o sono REM, normalmente, sentem-se alertas, com maior índice de atenção e refrescadas, ou mais dispostas e prontas para a actividade normal. Os movimentos dos olhos associados ao REM são gerados pelo NGL (ver versão inglesa) do Tálamo e associados a ondas occipitais. Durante o sono REM o tônus muscular da pessoa diminui consideravelmente.

Duração do sono REM
Durante uma noite de sono, uma pessoa normalmente tem cerca de 4 ou 5 períodos de REM, que são bem curtos no começo da noite e mais longos no final. É comum acordar por um curto período de tempo no fim de um acesso de REM. O tempo total de sono em REM ronda os 90 a 120 minutos por noite para adultos. Entretanto a quantidade relativa de sono REM diminui acentuadamente com a idade. Um bebê recém-nascido dorme mais de 80% do tempo total de sono em sono REM; enquanto uma pessoa de 70 anos dorme menos de 10% em sono REM. A média para adultos jovens é 20% do tempo total de sono ser em sono REM. (MARKS, 1995; REIMÃO, 1996; SIEGEL, 2003)."


Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/REM_(sono)

Objetivo do blog:

Parceria entre José Antonio Klaes Roig, educador, poeta e escritor, residente em Rio Grande - RS - Brasil, com Elisângela Zampieri Panisson, educadora, poeta e escritora, residente em Curitibanos - SC - Brasil, que como colegas e amigos virtuais, resolveram criar um ambiente virtual para escrever coletivamente breves poemas e minicontos, além de pensamentos passageiros sobre coisas duradouras da vida real e virtual.

Observação: Imagem extraída da internet, do endereço abaixo, meramente ilustrativa da questão do "movimento rápido dos olhos", pela questão de olhar com um relógio em seu interior...
http://www.overmundo.com.br/_banco/multiplas/1217195678_olhos.jpg