quinta-feira, 14 de maio de 2009

Invasores de corpos


Na aurora de minha vida, vi uma luz riscar o céu...
Meu pai disse tratar-se de um cometa, meu irmão, de um disco voador... Nunca esqueci aquela imagem até o dia que na TV assisti a um curioso filme chamado Invasores de Corpos que era uma refilmagem de um clássico da ficção científica intitulado Vampiros de Almas... Na história de ambos, alienígenas chegam ao planeta e tomam conta dos corpos das pessoas...
Naquela noite de inverno, depois de ver o filme, não consegui dormir. Levantei diversas vezes para ver se a porta estava trancada, se as janelas estavam fechadas, se o assobio do vento lá fora não era algum sinal misterioso para a invasão...
Cresci e os filmes passaram a ser tratados tão-somente como tais, fábulas modernas, reinvenções da vida, intertextualidade com o imaginário...
E tudo transcorreu em plena tranquilidade, até o dia que meus pensamentos começaram a não mais me pertencer... Minhas palavras aparecerem disfarçadas nas palavras escritas e faladas de outros... Que tudo que eu pensava, logo alguém estava sendo mais criativo do que eu, reescrevendo minhas ideias doutra forma...
Naquele dia, pude voltar aos tempos de menino, com receio de que os alienígenas estivessem de fato entre nós, invadindo nossos corpos, devassando nossos pensamentos, substituindo nossas ideias pelas suas, sem que a maioria se apercebesse disso...
Tenho medo de um dia abrir um jornal e ver meu clone tomando meu lugar sem que ninguém perceba... Essa invasão possui um código estranho, que é acionada de forma subliminar pela via informatizada e invadirá em breve o mundo inteiro. Basta apertar a tecla "control", associada às teclas C e V...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Menino Francisco


Menino Francisco rabiscou uma flor no papel.
_Que é isso menino, flor marrom com folhas azuis?
E a mãe, hábil manipuladora de borrachas apagou o desenho de Francisco e ensinou-lhe o que lhe parecia óbvio:
_Menino tolo, não sabe que flores são vermelhas com folhas verdes?
Menino Francisco aprendeu logo a lição. Passava os dias que lhe escorriam lentos, a desenhar flores vermelhas com folhas verdes. Muitas delas...
Menino Francisco cresceu. Arrumou emprego numa fotocopiadora. Acostumou-se logo a aceitar a rotina das pilhas de papéis à sua frente, cumprimentar os clientes que não raras vezes também eram as mesmas caras, apertar o botão e cobrar alguns centavos pelo trabalho.
Nas horas vagas o moço Francisco dedicava-se à seu passatempo preferido. Pintar telas... Flores vermelhas com folhas verdes.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O algoritmo da chuva

(Foto: Emanuel Couto)

Lá fora chovia muito, enquanto que dentro da casa a mulher chorava uma goteira sem parar...
A mulher solitária de fato e de direito, e o temporal que rosnava do lado externo não era maior nem pior do que o que estava avançando em seu interior...
A cada relâmpago lá fora, o coração da mulher disparava, seus olhos piscavam sem parar e mil flashes de lembranças perdidas, como num filme, passavam sem estrondo diante daqueles olhos que julgavam já ter visto de tudo na vida. Flashes da vida que teve um dia e que deixou desaguar pela ribanceira do rio-vida, soterrando a sua casa imaginária...
Era um dia como outro qualquer... Mas ela não era mais a mesma há muito tempo, desde que aquela casa deixou de ser o seu lar...
O vento assobiava lá fora, e as telhas da casa ameaçavam levantar voo; os pássaros, desnorteados, voavam em círculos, e o algoritmo da chuva codificado nos pingos que caíam nas poças d'água, demonstravam que a cada minuto, os mesmos pingos caíam sobre os mesmos locais, assim como os mesmos erros se repetem por toda vida sem que as pessoas deem-se conta dessa misteriosa matemática...
Ver aquilo foi pra ela a gota d'água. Preferiu sair somente com a roupa do corpo pra rua, no meio da chuva, antes que ele, o Ilustre Desconhecido que com ela vivia sem conviver retornasse faminto do trabalho... E assim o fez, e de corpo e alma, literalmente desaguou, sumindo pelo breu que se fez o dia, por conta daquele estranho temporal de emoções...
O tempo passou, e a mulher continuou solitária, noutra casa, noutra cidade, noutro trabalho... E ali, fotocopiando a vida pros outros, um dia sentiu um pingo cair sobre sua cabeça quando o colega disse que a vida era estranha... De pingo em pingo aquilo tudo virou uma improvável goteira... Era um dia como outro qualquer... Estava sol forte, de repente nuvens carregadas estavam lá fora de novo. Um temporal ameaçava por ali desabar... Era hora do almoço e os dois colegas ilhados em poucos instantes... Foi então quando a matemática dos dias, horas, minutos e segundos, em seu algoritmo peculiar que lembra o cair dos pingos da chuva numa poça d'água, misterioso balé aquático, abriu uma pequena passagem para outra dimensão...
O homem apenas pegou seu guarda-chuva preto e fez um sinal com a mão para ela: vem! E ela, naquele instante, não sabia como, perdeu por completo o medo da chuva lá fora, pois ali embaixo daquele guarda-chuva, sinônimo de abrigo e proteção, pareceu-lhe mais do que a grande metáfora da redenção... E os dois saíram à rua, bem juntinhos, sob o mesmo abrigo de lona e armação de arame, desviando das poças d'água pelo caminho, até o restaurante, ambos em silêncio, olhando-se sem nada dizer, pois as palavras nesses momentos mágicos perdem o sentido... São apenas pingos de chuva numa poça d'água qualquer a pipocar...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A indiazinha


E a velha adentrou ao recinto puxando pela mão a menina. Olhos pretos e espertos, mirou-me de canto ameaçando um sorriso acanhado.
_É uma indiazinha, coitadinha! Está a vender colares!
_Dá um abraço no tio!
_Olha que lindos!
O tio enfia as mãos no bolso e estende uma nota amassada, enquanto a velha cata algumas sobras do almoço imaginando que pelo avançado da hora, deva estar com fome.
A pequena de olhos pretos sorri. Sorrio também enquanto observo-a. Enquanto come, os olhos procuram por algo que não sei o que é. Ela balança os pés, calçados com um chinelo bem maior que eles. Parece uma senhorinha. Saia comprida, a blusa rota e um colar pendurado ao pescoço, como os que traz no balaio de fibras, abraçado à cintura.
_Ah coitadinha! Estava com fome.
A velha parece querer redimir-se pelos quinhentos anos de exploração. Toma o balaio que a menina mantem ao lado da cadeira e vai oferecendo aos que estão por ali, enquanto repete:
_É uma indiazinha!
De repente a pequena recolhe as sobras em uma sacola e sai em silêncio em direção à porta. Apenas um levantar de olhos e novamente o mesmo sorrisinho ligeiro.
Do lado de fora, sentada à sombra está a mãe amamentando o filho de colo.
A velha alcança a menina, segurando-a pelo ombro e apontando para a igreja há alguns metros de distância:
_Ta vendo aquela imagem? É a padroeira de vocês. Diz pra mãe rezar pra ela.
Nem matas, nem ocas, nem pajé, nem nada do que os livros grossos ou os professores contaram. O relógio apontava quatro horas da tarde e na terceira badalada do sino mãe e filha índias adentravam a igreja. Lá dentro um hino à padroeira.