terça-feira, 21 de abril de 2009

Formigas de Deus

Foto: Frederico Figueiredo Cerdeira

Estava o menino a andar de mãos dadas com o pai pela rua deserta, eis que de repente estacou e deu um grito de surpresa:
- Olha ali pai, uma formiguinha de Deus!
O pai olhou para o chão e viu caminhando rente a parede de uma casa abandonada uma formiga daquelas pretas, dez vezes maior que uma formiga comum, mas insignificante perto dele e até do filho pequeno, ainda em fase de crescimento. Sabe-se lá por que de uma hora pra hora o menino passou a chamar tudo de cachorrinho de Deus, minhoquinha de Deus, borboleta de Deus...
Dessa feita, o menino, que tempos atrás gostava de pisar sem dó nem piedade nas formiguinhas diminutas e pagãs, diante da tal formiga de Deus, apenas observou seu trajeto pela trilha invisível, levando uma diminuta folhagem verde até sumir num pequeno buraco na parede...
Pai e filho seguiram seu caminho, de mãos dadas, rumo à escolinha. O homem deixando lá o menino, seguiu pensativo rumo ao trabalho. Curiosamente, vez por outra, ele olhava para o céu, com o olhar vidrado, como se ele fosse também uma formiguinha de Deus...

terça-feira, 7 de abril de 2009

Apenas um conto de fadas

Foto: Joaquim Pires Ferreira

Era um dia, como outro qualquer, quando o homem com aspecto de pacato - que sempre sentava-se a mesma hora, no mesmo banco da praça com seu inseparável livro nas mãos -, sentiu-se mal, faltou-lhe ar, desmaiou...
Quando voltou a si, o mundo cinza em que vivia, passou a ter uma cor vívida, beirando aquele efeito de colorização feito por computador. Mas isso ele desconhecia...
Estava ele ainda sentado na praça, quando uma bela menina de bermuda curta e com um boné vermelho, com a aba virada ao contrário, por ele passou, dirigindo-se entre os canteiros e arbustos, rumo ao centro da cidade. Atrás dela ia um senhor de meia-idade, com pés e mãos imensos, olhos arregalados, uivando atrás daqueles tenros rastros, procurando atalhar os próprios passos.
Noutra extremidade do ermo local, uma moça caminhava apenas com um calçado no pé, o vestido todo esfarrapado, olhando para trás, como quem fugia muito mais do que das horas. Era noite escura, porém o relógio da praça ainda não tocara as vinte e quatro badaladas... Quem a perseguia, queria mais do que devolver-lhe o outro pé do par de sapatos envernizados.
Mais adiante, um menino, no canto mais escondido da praça, colhia estranhas folhas de um pé que ele jurava para o vigilante ser apenas de feijão, que o levaria até às nuvens. Seus olhos estavam vidrados, como quem de fato estivesse bem longe, mas o terrível gigante que ele dizia enxergar, só desceria do céu se ele não pudesse uma antiga dívida saldar... Mas o vigia incrédulo lhe disse que fingiria não ver o tal gigante, se ele também lhe desse a sua parte...
Era já noite funda quando o homem ainda sentado na praça de novo passou mal. Ao voltar à tona, à realidade, tudo aparentemente estava na normalidade. Todos aparentavam o que diziam ser... Todos personagens de uma história sem autor... E o livro inseparável, caído ao chão estava, misteriosamente sem as suas últimas páginas, enquanto a menina do boné vermelho voltava do centro com sua bolsa dourada a girar...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Olhar Implacável


(Tela de Pablo Picasso)

Cruzou com ela hora qualquer do dia. Tinha muito tempo que não a observava com atenção. Mirou-a, frente e verso, não aprovou o que viu. Estava um bocado abatida, e aquelas olheiras então! Havia engordado também. Os cabelos brancos insistiam em denunciar seu auto-descaso. Que desleixo! Tinha o olhar vazio, sem brilho e algumas rugas precoces.

Já fora mais feliz. A vida que já fora mais generosa com ela, agora parecia esvair-se fazendo-a parecer estranhamente inanimada. Espantou os pensamentos piedosos. Não gostava deles.

_ Reage menina!!! - Pensou com seus botões - Tão jovem ainda!

E que peso parecia carregar sobre aqueles ombros que pendiam para frente como se sobre eles descansasse o mundo.

Não era feia, mas os traços delicados se encondiam agora sobre as sombrancelhas esguias que quase se encontravam sobre o vinco fundo formado entre o vão dos olhos. Tinha apenas trinta e dois anos, mas aparentava quarenta - para ser generosa com ela.

_Para de pensar bobagem e vai cuidar da sua vida!
Era isso mesmo que ia fazer. Cuidar da vida. Afinal sabia quanto os espelhos eram cruéis e o quanto as coisas desta vida eram passageiras.

Olhou para fora e para dentro dizendo para si mesma o que ela, previdente e parcimoniosa julgava saber de tempo.

_Sossega criatura, você já morreu tantas vezes que já devia estar acostumada.