domingo, 20 de setembro de 2009

(Des)contando os dias


Ilustração: Issi Soizic

Dona Norma eu encontrei dia desses, estava indo para a festa de São Sebastião. Morávamos na mesma vila. Dona Norma é daquelas pessoas que não envelhecem nunca. É uma jovem de oitenta e seis anos, sempre faceira. Conserva ainda a mesma feição de quando a conheci. Bengala? Que nada. Anda a passos firmes, coluna bem reta, fala alto e forte. Usa uns colares bem grandes e brincos coloridos. Pinta o rosto e usa batom pouco discreto. "Passar da idade, minha filha...isso não existe" ela me explica. Só tem uma coisa que deixa dona Norma um pouco quieta. É o filho que mora tão longe. "Porque saudade Elisangela, é uma alegria que dói."

sábado, 19 de setembro de 2009

Regresso ao coração sem fim...

Imagem: Bruno Ehrs

Todos os dias eram gêmeos para aquele leitor compulsivo de livros antigos, confinado em seu mundo peculiar. Para ele, todos os dias eram cinzentos e siameses. Preso em si, sem amigos nem amores, convivia com seus anjos e demônios interiores, sempre em eterna disputa territorial. Os primeiros, diziam: pense antes de fazer; os outros, faça antes de pensar! Dessa turbulência existencial, eis que o leitor de livros de autores mortos, num dia cinzento como outro qualquer, recebeu pelo correio, sua encomenda atrasada: um novo livro antigo, obviamente, desses que se compra em sebos virtuais, já que ele se recusava a sair à rua, fazia tempos, desde que mais uma peste assolara o mundo. Tudo pedia por tele-entrega. Jamais abria a porta...
Naquele dia, parecido como outro qualquer, o carteiro bateu e ninguém atendeu. O aviso de entrega foi colocado embaixo da porta, como de costume, sendo assinado de imediato pelo morador, confinado no interior da casa. Enfiada a embalagem pela devida abertura, o morador correu pra abrir seu conteúdo. Mas pra sua surpresa e indignação, não se tratava do livro solicitado e parecia à primeira vista um desses de auto-ajuda. Esbravejou às paredes: “Não se pode confiar mais nem nos Correios!” Mas compulsivo que era, sem ter nada de novo para ler, passou a folhear o estranho livro, de capa dura, com letras douradas, com aspecto de novo, trazendo junto um CD. Era uma espécie de manual de auto-regressão hipnótica, no estilo terapia de vidas passadas. E assim, foi que na calada da noite o solitário iniciou sua viagem no tempo, sentado no meio da sala, em sua cadeira de balanço.
Colocado o CD no reprodutor de mídias, com o volume baixo, a auto-hipnose começou em contagem regressiva. A voz foi conduzindo seus passos, pedindo que se concentrasse e só retornasse ao seu tempo, quando ela ordenasse. Dito e feito. Relaxado com os comandos que lhe eram dados, o solitário passageiro da solidão foi sentindo-se acompanhado pela voz meiga e terna da misteriosa moça...
Pouco a pouco foi mergulhando no interior profundo do subconsciente, depois no inconsciente, sendo guiado pela mesma voz. Revisitou primeiro o dia anterior, depois a semana, o mês e o ano passados... Como um filme visto ao contrário, passou pelas cenas mais relevantes de sua vida. O primeiro amor, o primeiro trabalho, a primeira perda familiar, etc. De vez em quando a própria voz dava-lhe uma pausa na viagem, para que recuperasse o fôlego e continuasse o mergulho profundo ao interior de si mesmo... Parecia nadar em uma piscina quente, mas eram as memórias intra-uterinas que o faziam nadar naquele Mar da Tranquilidade.
Lá no fundo do oceano, nada pacífico das memórias, quando enfim chegou, ele encontrou uma tampa lacrada, e ao forçá-la foi tragado pelo ralo gigante que se formou... Quase se afogou, no exato instante que o CD apresentara um arranhão irrecuperável, que não permitia que a voz lhe desse o comando de retorno... E ali, depois de ultrapassar a fase intra-uterina, tragado pelo ralo, acabou naufragando numa estranha praia...
Socorrido pelos pescadores da vila, descobriu logo que fora confundido por um deles. Virgílio, todos assim o chamavam... Uma linda mulher, de nome Beatriz, veio correndo em sua direção. Dizia ser sua esposa. E o, antes, homem solitário, diante de sua beleza, de vez se encantou... Beatriz, a moça do cabelo liso, escorrido, dona de um sorriso que iluminava a praia àquela noite funda, como um pequeno farol... Levado para a “sua” casa, descobriu assombrado que lá todos os porta-retratos constavam de fato seu rosto... Que todos os moradores o conheciam e era considerado o pescador mais corajoso da povoação. Mas ele, que morava em 2009, numa cidade litorânea brasileira, levou um choque ao saber que para todos, menos ele, o ano em curso era 1909, e a povoação de pescadores encontrava-se em Portugal. Lembrou-se aos poucos da regressão que fizera no tempo e que algo teria dado errado. Provavelmente ficaria ali, aprisionado pra sempre, caso ninguém pudesse seu corpo retirar do estado de suspensão... Mas ao ver a beleza da esposa desconhecida até aquele instante, não ficou triste de estar confinado naquele período e lugar. Enfim, descobrira o amor longe de seu tempo e espaço...
E assim passaram-se os dias, até o dia que ele, um leitor compulsivo, descobrira algo que a esposa mantinha escondido a sete chaves: um misterioso livro de poemas. Seu título: Ruínas de Um Tempo Futuro. Quando começou a lê-lo algo estranho aconteceu... Os versos hipnóticos do livro o foram levando e elevando para um futuro idealizado pela mulher, muito parecido com o seu. Quando percebeu, seu corpo adormecido em 2009, começou a obedecer comandos vindos de 1909, até que num dos últimos poemas dizia: “Abra os seus olhos e seja sempre você!” E ele despertou de imediato, sem fôlego.
Nos dias que se seguiram, já no tempo presente, continuaram cinzentos, e ele não quis abrir mais nenhum livro. Mas um dia, a saudade da esposa que nunca tivera nesta vida, fez o homem procurar pelo livro para encomendar um novo exemplar, desta vez tendo o cuidado de examinar o CD, já na entrega. Mas logo o livro caiu de suas mãos ao perceber que o sobrenome da autora era o mesmo da poeta de seu passado... Na contracapa dizia que ela vivia em Portugal, era bisneta da poeta que morrera em 1909, quando seu grande amor desapareceu sem deixar sinais, apenas uma filha em seu ventre...
Naquele instante, seu coração sem fim não soube mais por qual caminho seguir... Com os dois livros em seu poder, o que regressava ao passado e o que revisitava o futuro, o solitário vasculhou a casa em busca de uma moeda para fazer um definitivo e paradoxal cara ou coroa...


Imagem extraída do site: Out of de bloon. Aproveite e visite.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nunca mais


Imagem: http://miniminimos.blogspot.com

Ela estava certa disso: Nunca mais viveria aquilo outra vez.
Ele explicou: Bom, eu acho nunca mais uma palavra forte demais para ser dita.
Ela achou que entendeu: Ta bom! Nunca mais falo.

O baile encantado

Ilustração: de Anne - Soline Sintès

A janela estava entreaberta e o vento sussurrava vez por outra o nome da menina, que deitada na cama, em sono profundo, imaginava o dia de seu primeiro baile, que ainda estava por chegar... No sonho, depois de por toda noite esperar, enfim, o seu pretendente misterioso veio ao seu encontro, caminhando de um jeito estranho, silencioso sem nada falar...
Era inverno, mas naquele dia fez um calor intenso, e à noite a brisa que assoprava as cortinas da janela do quarto da menina, vinha do sul, trazendo junto algo mais.
Enquanto sonhava com o príncipe encantado, a menina quase moça, de repente pôs-se de pé a bailar pelo quarto, abraçada ao vento, mas de fato ela continuava sonolenta, de olhos bem fechados, tateando no espaço. Caminhava às cegas pelo quarto, depois pela sala, até que ainda de olhos bem fechados e bailando sem parar, abriu a porta da rua e foi em direção ao quintal da casa, de onde a voz de seu príncipe a levava como que por encanto.
Quando tudo se encaminhava para o final feliz, a voz rouca do herói despertou a menina, que de repente viu-se de pijama e chinelos em pleno quintal. Diante dela, no chão, um enorme sapo cururu, coachando sem parar, como quem pede algum favor... Ela o chutou para longe...
Assustada, a menina-moça correu para dentro de casa, trancando-se no quarto e jogando-se sobre a cama, chorando, sem pregar os olhos até o amanhecer, quando enfim de novo adormeceu...
No seu sonho profundo e continuado, o príncipe com o olho roxo, veio novamente ao seu encalço, guiado apenas pelo misterioso par de chinelos que ele encontrara na escadaria do baile, antes de a menina sumir por alguns momentos, na noite sem luar...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Dois pra lá, dois pra cá


Imagem: Benjamin Lacombe

E era pela janela que os olhos miúdos sonhavam. Ajoelhada aos pés da cama quase encostada sobre a abertura retangular protegida pela rigidez do vidro, ela acompanhava o movimento das pessoas do lado de fora. Ouvia a música também. Era dia de baile. Ela gostava de baile. Mas tinha sete anos. E meninas de sete anos não vão a bailes - o pai dizia. Ela fora, uma única vez.
Gostava de acompanhar o ritual em que o rapaz um pouco tímido tentava encontrar entre as inúmeras moças presentes a que lhe faria par naquela dança. Corria os olhos pelo salão até que finalmente encontrava. Tomava um gole de uma bebida qualquer, talvez para ganhar coragem e finalmente dirigia-se à ela. Estendia-lhe a mão, ela sorria enquanto era conduzida ao centro do salão e dançavam lindamente, as vezes a noite toda.
As palmas a trouxeram de volta. O pai havia cumprido a promessa. Um lindo baile quando completasse quinze anos. O moço não ficou tímido quando a tirara pra dançar. Fora contratado pelo pai. Dançariam três músicas, nem uma a mais pra não atrasar o rapaz, a primeira, uma valsa. Estava tudo preparado: a hora, os passos, o olhar, o sorriso, até o beijo. Coisa sem graça - ela pensou, enquanto a música começava a tocar. Eram dois prá lá, dois pra cá.