sexta-feira, 27 de março de 2009

De pai para filho

Foto: Mariah

Meu pai, quando tinha cerca de quatorze anos, quis voar.
Fez um par de asas com armação de bambu forrada com papel celofane. Subiu no telhado de uma casa e de lá se jogou. Voara alguns milésimos de segundo até que a queda livre lhe arremessou contra o chão. O sonho lhe custou fraturas na cabeça, perna e braço... Depois disso, ele tornou-se artista plástico, voando apenas na imaginação, dando asas a seus sonhos com tinta sobre tela.
Eu, filho de sonhador, em sonhador me transformei quase na mesma fase da vida, próximo dos quatorze anos, através das folhas dos livros, verdadeiras asas de papel querendo voar, quando o vento passava ao largo assoviando...
Sei que meu filho também será um dia um legítimo sonhador como seu pai, avô, bisavô..., pois é essa a sina dos homens dessa família, todos descendentes de Dédalo e Ícaro. Todos com seus sonhos particulares de voar. Cada qual com o seu jeito de construir suas asas em torno das casas labirínticas da memória e da imaginação... Quem nunca voou é descendente de Minotauro, e aprisionado em seu labirinto particular pra sempre estará...

quarta-feira, 18 de março de 2009

Lógica de criança


No telefone:
_Filho, como é mesmo o nome do seu dentista? Aquele que ficava perto da escola, o último que te levei... Vou indicar à mãe do Beto.
_ Ah! Aquele que ligou aqui em casa semana passada?
_ Esse. Esse mesmo!
_ Hum... é que ele não falou o nome não. Acho que era o fulano de(n)tal.

domingo, 8 de março de 2009

A menina dos meus olhos...

Foto: Mariah

Toda a noite o mesmo sonho se repetia...
Ela sonhava com um castelo, onde vivia presa à espera de seu príncipe encantado, para ser libertada do bárbaro que a capturou...
De dia estudava, de noite sonhava, e o mesmo sonho a perseguia. E vinha como que em capítulos, de forma sequencial...
Tudo bem que ela era uma leitora de conto de fadas, adorava ver filmes de faz-de-contas, mas no final das contas (noves fora), apesar disso, de dia vivia com os pés bem firmes ao chão. Era à noite que sua sina sempre se descortinava em sua mente, quanto mais mergulhava no sono profundo... E lá do outro lado emergia num reino desencantado, em que todos eram infelizes para sempre...
O rei não gostava da própria rainha, mas com ela convivia para preservar as terras, a fortuna contra os invasores. A rainha, igualmente, preferia morrer a ter que com aquele homem sem jeito viver pro resto da existência... O príncipe consorte, azarado estava pois sua amada gostava mesmo é de seu primo-irmão, que desejava mudar a linha de sucessão, tramando contra o inválido parente. O bispo adorava fazer guerra e queimar gente. O chefe da guarda, matava em nome de Deus, mas tinha por seus prisioneiros ardente compaixão...
Era um mundo estranho em que a menina todas as noites adentrava, quando seu corpo encharcado de suor mergulhava noutra dimensão. O espelho mágico lhe dizia que o dia que ela encontrasse o verdadeiro amor, ela o reconheceria à primeira vista, mas ela passara a descrer do mundo de sonhos ao seu redor.
Então, um dia, quando a menina não conseguiu dormir profundamente, rolando na cama toda noite sem sonhar, algo parecera em seu interior mudar radicalmente. Quando acordou, o suor de seu corpo tinha um gosto salgado demais... Levantou-se e foi tomar banho, e o seu rosto no espelho pequeno do quarto a espantou. Estava transfigurado, por conta de uma noite de insônia e ansiedade.
- Será que nunca mais irei sonhar com aquele reino desencantado? - perguntou ao espelho e esse, como não poderia deixar de ser, nada respondeu, pois isso só aconteceria se ela estivesse dentro de um sonho ou de um filme.
Já na escola, no meio da aula de História, a menina cochilou por breves momentos, que foram intensos. Quando sua mente estava se desvencilhando de seu corpo, e uma brisa leve e um cheiro de maresia se aproximava dali, eis que o tímido colega ao lado a despertou.
- Clara, cuidado! O professor tá te olhando! Acorda, antes que ele te chame a atenção.
Misteriosamente a menina despertou do encanto, e ao olhar para o menino da carteira ao lado - que todos os dias estavam ali e ela nunca tinha visto direito seu rosto, tampouco sabia seu nome -, algo em seu interior mudou. Bastou olhar em seus olhos e reconher nele o que o espelho de seus sonhos previra.
Naquele dia nada disse, apenas sorriu para ele, mas o professor de História, que tinha as nítidas feições do rei de seus sonhos, piscou o olho para ela, como que se dissesse pra si mesmo:
- Essa história eu conheço, menina, nessa vida você ainda é a aluna e eu o professor...

sexta-feira, 6 de março de 2009

Sobre Flores e Jardins


(Foto de Maria Fernanda P. Barreira, do Flickr)

Dirijo-me para o canteiro colorido monocromaticamente pelo amarelo das sempre vivas, descansando meus olhos sobres elas.
Quando criança inquietava-me o fato de as sempre vivas não morrerem.
Hoje compreendo. Elas morrem, mas insistem em manter algumas de suas características vivas como a cor, por muito tempo e apesar da textura seca e do pouco viço, confundem-se facilmente com outras espécies vegetais vivas.
Não são portanto, sempre vivas, são mortas-vivas que à exemplo de algumas espécies racionais desistem de si mesmas, abandonam-se, morrem vivos... Perdem o viço, o brilho, a energia, o desejo, o lirismo.
Trabalham, andam, conversam e se comportam como robôs pré programados desprovidos de prazer, euforia ou entusiasmo. Ora, uma obrigação de quem está vivo. Mantêm a estrutura e sofrem de falência interna.
Sempre vivas são flores artificiais. Ao contrário destas, algumas espécies sabem que precisam morrer verdadeiramente infinitas vezes para tornar-se vida. Assim, não retardam esse momento.
No jardim da casa de minha mãe, havia uma flor, chamada onze horas. Durante a maior parte do tempo mantinha-se fechada, parecendo morta. Mas quando o sol atingia o auge de sua intensidade, desabrochava todo seu encanto, perfume e beleza. Morria e renascia um pouco a cada dia.
Acho que quando Deus criou o mundo desejou um grande canteiro de onze horas. Mas no meio delas, assim como ervas daninhas que nascem sem ninguem semear, germinaram sempre vivas. Um dia, talvez elas entendam que precisam assumir a morte, para transcenderem.