quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Sobretudo





Ligia eu conheci voltando de Diamantina. História interessante. Viveu na Índia por algum tempo  e foi pra lá à procura do fio que liga as coisas. Que amarra os por quês, os para ques e os como. Do fio que faz entender o que chamam de sentido, significado, razão ou coisa semelhante. 

 Até o dia em que percebeu que é preciso aceitar o silêncio quando vem. E num dia, sem procurar descobriu. O sentido era dar sentido. 

Viver é dar sentido. Na Índia ou em qualquer que seja o lugar. 

Ligia trabalha agora no setor de queimados. Pinta a cara de tinta e usa nariz de palhaço. As vezes segura firme o choro enquanto vai tecendo histórias de riso.

Observação: Imagem acima extraída da internet, endereço abaixo http://sissisideas.blogspot.com.br/2009/11/fio-do-novelo.html

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A... manhã

 [Imagem de autoria desconhecida]

E o chuveiro estragou e resolveu deixar o conserto para amanhã.
E o telefone parou de funcionar e decidiu ver isso só amanhã...
E a descarga do sanitário, idem e ib idem...
E as coisas foram se acumulando e sendo deixadas sempre para depois...
E a vida? Pensou, repensou e resolveu deixar também para amanhã...

O Terminal

Créditos da Imagem: Patricia

Pai e filho chegaram juntos naquele pouco utilizado terminal. O velho arquejante, o novo suspirante. O voo marcado, para variar, estava atrasado. E os dois queriam que ele atrasasse mais... Queriam ficar juntos mais um pouco, mais um tempo. Era um dia cinzento. Toda despedida é cinzenta, pensava consigo o primogênito. Logo o chamado inevitável, inadiável... E um último abraço antes do voo longo. O coração de cada um batendo sem jeito, descomPASSADO... Têm coisas na vida que não tem jeito mesmo. Era a hora do embarque. A despedida não poderia ser mais adiada. Pelo portão 7 o pai se foi sem malas nem bagagens, só com a roupa do corpo. pelos vidros, o filho acompanhou a partida, até que o voo sumiu entre as nuvens cinzentas num céu profundo... O pai seguiu seu destino e o filho, sozinho, foi embora do terminal daquele estanho aeroporto iniciado com a letra H... Na hora H, por mais que pensemos estar preparados, quem permanece em terra, por mais paradoxal que seja, é quem fica sem chão... Assim são as coisas nas gentes e as gentes nas coisas da gente: o velho conhecido - o passado - que se vai... E o ilustre desconhecido - o futuro? - que vem nos dar a mão...

sábado, 26 de novembro de 2011

Outra



Dos dias que começavam cedo, gostava de abrir janelas, desempoeirar os tapetes, deixar que o resto de sol que se desviava dos prédios, entrasse por entre a janela grande da sala. Os raios desenhavam sombras no chão.  No  quarto dos fundos, algumas coisas dele ainda permanceciam lá. Não sabia ao certo porquê.  É provavel que os amantes se despeçam assim, aos poucos, porque insista neles alguma espera, alguma lembrança ou saudade. As vezes escolhe-se sofrer devagar. Truque apenas,  para se continuar vivendo. Havia ainda a asa quebrada. Havia ainda uma leve tristeza e um algo que pendia da asa quebrada. Era inútil a tentativa de alinha-la ao corpo, as vezes. Mas agradecia pela memória pouca que vinha aperfeiçoando. Nunca pensara que isso lhe serviria um dia. E da janela,  via o mundo, e da janela vê-se o que se quer. Entendia enfim, que a realidade não é algo estático. Suas lentes agora refletiam a mobilidade. A mobilidade que só enxerga quem quer, e que sabe que depois da janela e dos prédios e das coisas todas do mundo, no fim ou no começo de tudo, deve haver alguma coisa, e a simples desconfiança, abre todas as janelas. E o resto de sol, procure as frestas, os cantos, os buracos, e devagar ocupe a sala, o quarto. E não é de fora que se vê, é de dentro. E por que olhar de longe, se pode descobrir de uma vez por todas, que de perto ja é outra?


Observação: Imagem extraída deste endereço
http://umacancaoedipiana.blogspot.com/2010_11_01_archive.html

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Escavação II

[Imagem de autoria desconhecida]

Estava ali sozinho no sítio, o arqueólogo de si mesmo, examinando camadas e mais camadas geológicas de sua vida, até que a primeira chupeta e o cordão umbilical achou. Ouviu um choro de criança. Levantou-se de supetão. Olhou em volta e nenhuma viv'alma. Junto dele, apenas sombra de um menino que no tempo se perdera... soterrado pelas próprias divagações...

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Encantada

 (imagemn de autoria desconhecida)

Naquela manhã, o sol acordou dourado e os cabelos da menina, antes lisos, estavam todos cacheados. Caminhara pelo bosque florido rumo a uma escola de vidros espelhados. Tinha que reencontrar um velho amigo que ela nem sabia como estava naquele local dando aula. As crianças o rodeavam, encantadas com o jogo de espelhos que mostrava no vidro liso o futuro profundo que um dia lhes seria ofertado. Maravilhada com a cena, a menina de repente amanheceu. No quarto escuro, seus olhos castanhos se tornaram azulados e lamentou tudo ter passado, tudo ter sido apenas um sonho bom. Existem coisas que nos transpassam, mas nunca passam. A amizade, mais que o amor, era uma dessas coisas que a menina descobrira ao tornar a ver no espelho do quarto seus cabelos novamente lisos... Surpreendeu-se quando viu um pequeno ramo verde entre os seus fios dourados, talvez recolhidos sem perceber, quando adentrou no bosque do sonho encantando... Encantou-se, então, com a possibilidade de estar sonhando acordada, mergulhando de corpo inteiro no espelho de pentear saudades...

domingo, 12 de junho de 2011

A cadeira de balanço

 [Imagem de autoria desconhecida]

E a moça fechou os olhos e deixou-se balançar pelo tempo, naquela cadeira encantada, que fora de sua mãe, da mãe dela e doutras tantas mães.
Era tarde quando adormeceu sobre a cadeira de balanço mágica, acordando numa manhã qualquer,de um dia qualquer.
Custou a abrir os olhos, que pareciam concretados, aflita, começou a chorar. Quando o rio interior tornou-se um mar, despertou...
A casa, estava com a pintura renovada, o jardim que não existia mais, todo florido.
Ela, que fazia décadas não usava mais vestido, estava com um cheio de babados e seu cabelo curto, tinha crescido e com tranças.
Quando levantou-se da cadeira de supetão, olhou tudo em volta e não acreditou. Foi olhar para dentro da casa e o vidro da janela a assustou.
Ela ainda tinha trinta e poucos anos, mas seu reflexo no vidro da janela empoeirada do tempo contradizia sua visão.
Lá dentro, na cozinha, sua mãe, sem as rugas costumeiras, continuava a pilotar o fogão.
Com todo o cuidado, a mulher, metamorfoseada por conta da misteriosa viagem no tempo, foi abrindo a porta da memória e adentrando em seu interior.
Pé ante pé, a mulher em forma de menina, sem saber, foi repisando os mesmos passos de outrora.
Ela nem sabia que ano, mês, dia ou hora eram aqueles. Sabia apenas, a duras penas, que aquela volta era necessária para ambas: à menina e à mulher.
Sua mãe fazia um bolo simples, mas não era um bolo qualquer. Era um bolo de aniversário. O seu aniversário.
Seu pai chegou da rua, todo apressado e ao ver mãe e filhas juntas, diante do fogão, foi até o armário e de lá de dentro pequena magia realizou.
Trouxe uma caixa de papelão, forrada com papel de presente barato, mas que fora embrulhado com toda riqueza da situação.
O homem era sério, de poucas palavras, mas ao estender os braços à menina, nenhuma palavra poderia dizer mais do não foi dito por ambos.
O silêncio falou mais que todo um dicionário do cotidiano daquela família, vivendo no meio do nada.
Era noite, quando todos resolveram dormir. Naquela noite a menina não queria mais adormecer, queria tecer o tempo, ficar ali para sempre.
O pai disse que iria vender a cadeira de balanço, que lhe trazia lembranças tristes da sua mãe.
Mas a menina, perdida no tempo, saiu correndo em direção aos pais, pedindo aos prantos: Nunca se desfaçam dela para que eu possa voltar.
Pai e mãe olharem-se com cuidado, pensando em voz alta: criança diz cada coisa!
Pedido respeitado, diante das dificuldades familiares, o pai foi vendendo pedaço por pedaço do terreno em torno da casa.
Porém, jamais se desfez da cadeira, mesmo quando a menina cresceu e para a cidade grande se mudou.
Dizia para si mesmo, com certa dor no peito: Um dia ela voltará, eu sei disso, ela prometeu.
Era inverno, quando a menina, no meio daquela noite fria, sem nenhum agasalho, sentou-se na cadeira de balanço e tornou a adormecer.
Quando abriu os olhos, era um dia como outro qualquer, mas ela não era mais a mesma, nem a cadeira de balanço, sua companheira de viagem.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

#microssonho1

 [Imagem de autoria desconhecida]

Acorde! Acorde! Acorde! - ele ouviu aquela voz distante lhe chamando para o viver. Quando abriu os olhos, não havia mais palavras, apenas um corpo em forma de violão, esperando pelo seu toque...

Umbigo

 [Imagem de autoria desconhecida]

-Mãe! disse ele. Quando eu sento meu umbigo some!
Ao que ela concluiiu: O problema do mundo é que permanecem, as pessoas demasiado tempo em pé!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Silêncio


(imagem do Flickr)

Eu só fico quieta quando quero ouvir um recado. Não que eu não saiba, também não é que eu tenha pressa. Ganhei um par de sapatos novos e dei de pisar com mais cuidado e de caminhar um andar mais atento.  Mas tem dia que silêncio incomoda. Dia que silêncio incomoda é dia que a gente escuta o vento que faz música entre o beiral e a fresta da janela e a quietude vira coisa que a cabeça quase esqueceu, mas por descuido foi largada num lugar qualquer, ficou à vista. Aí ja viu! Bem falava minha mãe... A tivesse ouvido e teria aprendido a separar lembranças. Algumas eu largaria no fundo da gaveta, onde só se mexe quando a gente precisa rever a chuva que ja mofou as palavras, nem que vez por outra eu desse de cara com a minha covardia. Minha casa é ficar quieto, mas tem dias que o barulho do mundo faz falta. Barulho do mundo é quando a vida pisca no semáforo, e tem gente cruzando a avenida, e criança correndo atras da felicidade, porque o amigo chutou muito forte. Quando eu descobri o barulho do mundo não quis mais saber do silêncio, desses, que viram dor e abraçam o peito. Quando eu nasci, eu descobri uma cidade chamada Silêncio. Seis horas da tarde tudo parava. E a quietude se espichava até o dia seguinte quando os galos, acordavam o silêncio e Silêncio acordava. Mas nem acordada fazia barulho. Silêncio era uma pausa bem comprida. Se não fossem os galos e dona Nenê que vendia doces de coco logo cedinho e tinha voz alta e batia de porta em porta, perigava de Silêncio passar o dia dormindo. Foi lá que eu vivi até a mocidade. Foi quando eu achei que felicidade devia ser uma coisa bonita que fazia barullho. Agora, quando vira outra vez silêncio eu aproveito para ir colocando umas palavras. Sempre gosto mais das palavras que dá pra gente escrever quieto. Quando vou no mundo é tanta coisa, que nem lembro. Agora eu ja me acostumei dessas coisas sem serventia e se o vento bate na janela, eu ja nem ligo mais, eu vivo mesmo é de emendar saudades!

Observação: Imagem acima, extraída do endereço abaixo
http://farm4.static.flickr.com/3194/2941879935_024054b1ce_m.jpg

sábado, 18 de setembro de 2010

O passageiro das quatro estações

(Autoria da imagem desconhecida)


Quando a moça adentrou no portal,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Também sabia que não poderia amá-la por si só. Talvez,pelo fato de que a vida imite sem jeito o sonho;e o sonhar talvez seja como reacomodar o viver em sentido contrário! E o moço,meio que a contragosto,fez de conta que não entendia os sinais,deixando ao Mágico Tempo decifrar seus próprios enigmas. Viver é escrever o próprio destino,além das próprias palavras.E o moço vazio de si bem sabia que o mundo era bem maior que isso. As palavras possuem vida própria,mas nem tudo elas podem contar.Entre o segredo e o degredo há às vezes grande interrogação.
O moço,passageiro do próprio destino,num desatino,desceu naquela misteriosa estação,sem malas nem itinerário,atrás daquela moça. Não era aquele o seu caminho,ele sabia,até descobrir que nada sabia,nem de si mesmo.Sua bússola sentimental é que o guiou até ali.
Naquela estação,como um estranho portal,o coração do moço sentiu o tempo rodopiar em falso,feito redemoinho sem explicação. Naquele mundo,um segundo era um montão.A moça era soberana de seus sonhos,e o trem,que ía e vinha,tinha a sua própria missão.
O destino os aproximou,destinados estavam a se cruzar naquela estação,ainda que estivessem noutra estação interior ao desembarcar. Quando ele a viu primeiro,e ela nem notou,ele sabia,depois lhe contou,que tinha certeza de conhecê-la,mesmo diante do improvável. Inimaginável é passar por essa vida com a bússola errante,passando diante do seu Norte magnético,com pressa,sem o reconhecer.
Mas o destino mostrou-lhe que aquela viagem(e desembarque)era apenas de passagem.Em apenas uma imagem,toda uma outra vida pode ver. Nem tudo que se vê,se crê.Nem tudo que se crê,se vê.Ele,que nem sabia de sua existência,intuía que um dia iria,enfim,conhecê-la.
E naquele instante,diante da moça de seus sonhos,ele tornou-se quase imortal,recuperando em parte suas recordações. Lembrou-se da primeira estação,quando era ainda verão,e o calor da primeira paixão o fizera soldado fiel daquela bela rainha. Naquele tempo distante,ele soldado errante,morrera literalmente de amor,guerreando pelo reino encantado em que a moça era soberana. Recordara também da segunda estação,quando as flores caíam sem parar,e que sempre chegava atrasado para conhecer seu grande amor. Nela,ele era escravo fugitivo,e a moça liberta,uma defensora da liberdade,igualdade e fraternidade.Ele perdera a cabeça,ela não.
Depois que o destino joga os seus dados,tudo está fadado a acontecer conforme a soma dos quadrados,o moço sabia muito bem. Depois que o amor joga os seus invisíveis dardos,nem tudo é tão certeiro,visto que o alvo é sempre móvel,e a vida tão passageira. Na terceira estação,frio,vento,chuva,encaixaram-se como luva no ânimo do poeta,que mais uma vez chegou atrasado ao encontro marcado.
Quando o moço reencontrou a mesma mulher das demais estações,ela estava destinada a outro,e ele resignou-se com aquele desencontro. Foi na quarta estação,a das flores,enfim,quando ele ali desceu,sempre sem destino,que um mundo novo se descortinou ao seu redor. Na última estação,o moço pode recordar de todas as demais.E o tempo recomeçou a girar os grãos de sua imensa ampulheta mágica.
E o moço,até então de olhos bem abertos,sonhando acordado,na verdade foi despertado pelo apito de um trem,vindo sabe-se lá de onde. Desperto do transe,o passageiro das quatro estações,indagou-se sobre a possibilidade de existir vida sem sonho n'algum outro lugar. Sentado no meio da estação,solitário em plena multidão,pensou se quando se perde o sonho perde-se também o sono e algo mais. De olhos bem abertos,o moço custou a acreditar no que via:diante dele,a mulher dos seus sonhos se materializara num pestanejar. O passageiro viajara pelas quatro estações,ora subvertendo a lógica do tempo,ora subtraindo dos dias aquela imensa saudade.
Ele a conhecia,desde sempre,eternamente;ela é que o estava conhecendo apenas naquele instante em que o sonho imitou a realidade. Ele olhou para ela como quem retorna de longa viagem,sentindo-se em casa como se nunca tivesse sido habitado antes por aquela visão. A moça do brinco dourado,de pé naquela estação,viu um mar de rostos sem expressão - todos vagando apressados -,fixando-se em um só.
De mundos diversos:um sem mala alguma;outra com a bagagem pesada demais,como quem carrega pedras ou deseja por uma sobre algo. O moço sem nome ofereceu à moça de seus sonhos ajuda para carregar as malas,sem se importar com o destino daquele trem das onze. Ela reconheceu nele o reflexo de um amigo distante - passageiro de um tempo errante - que não soube bem precisar,até o trem apitar.
O tempo possui três dimensões entrecruzadas: o sonho,o segredo e a vida.O destino possui também três: a amizade,a paixão e o amor. A cada reviver,o passageiro nem sempre dá-se conta de em qual dimensão poderá desembarcar,carregando apenas a bagagem interior.
Depois de vagar pelas quatro estações,ele enfim chegou adiantado,aguardando pela chegada da moça do brinco dourado,naquela estação. Naquele instante único,passado,presente e futuro brincaram de rosa dos ventos na mente do passageiro,condutor do próprio destino. Nas três estações anteriores,ele tinha confundido as placas com outra sinalização,descendo bem antes ou muito depois da moça.
A viagem era longa e a esperança do reencontro mais longa ainda.O passageiro já temia que a viagem fosse apenas em sua imaginação. Passou a duvidar do que vivia (não do que sentia) e da possibilidade que nutria de viajar no tempo;daquele amor torná-lo imortal. Ah,o amor!Não é flor delicada que se colha na primeira estação.Os céticos dirão que tudo não passa de coisa de poeta,de sonhador.
A moça,desconhecendo a jura secreta do moço,vagando pelos corredores do tempo,convidou-o para sentar-se ao seu lado no trem lotado. Lado a lado,Solitário e Solidão olharam-se ao seu modo.Ele confiava no tempo e no amor;ela desfiava seu novelo,fiando suas memórias. A moça reconhecera no ilustre desconhecido,um passageiro dos seus sonhos perdidos,um conhecido que retornava de viagem sem avisar. Todo encontro às vezes é um reecontro às avessas,promessa de vida,quando duas pessoas por acaso,despem-se do corpo e vestem a alma. Desconfiavam que nada é por acaso,nem mesmo o acaso,quando se encontraram naquela derradeira estação e embarcaram naquele trem.
Ele recusava-se a viver outra viagem sem poder amar dessa vez de fato,ainda que o Amor parecesse uma palavra quase sobrenatural. Sem aquela procura e sentimento agregado àquela moça,sua imortalidade era banal.E sem aquele encanto,o passageiro era reles mortal. O moço temia que se o amor verdadeiro,de fato não existisse,a vida seria grande prisão a céu aberto,o que faria dele um fugitivo.
Sua pequena imortalidade vagava no sentido inverso de sua imensa felicidade,que seguia junto à moça,naqueles trilhos e dormentes. Metade dos passageiros dormia de olhos fechados,a outra metade de olhos abertos.Os únicos acordados eram ele, ela e o maquinista.
Diante do óbvio,de que o Amor nos possui,mas nem sempre possuímos o Amar,o passageiro percebeu,enfim,que não precisava mais voltar. Aquela era a sua última e longa viagem,tinha perdido pelo caminho parte da inocência e imortalidade,mas era preciso seguir adiante. Enquanto a moça tricotava suas memórias,ele,sentado ao seu lado,pensava que o Amor é em parte uma viagem interior,uma idealização.
Todo passageiro das quatro estações nunca sabe ao certo o que se passa além do mundo exterior,dentro do mundo particular da amada. Mesmo assim,tudo que é verdadeiro lembra chama: alimentada deve estar para que possa alimentar também o sonhar e o amar de cada um.
A viagem se completa,por sorte,quando o passageiro encontra ao seu lado,mais que a companheira de viagem,além do meio de transporte. A viagem era longa e os demais estavam sonolentos.O moço teria dessa vez tempo de sobra para estar com a amada de outras estações. Aquela seria,com certeza,a sua última viagem,independente do que acontecesse pelo caminho com seu Amor e o seu Amar,isso ele sabia. O passageiro das quatro estações abdicaria de sua imortalidade infecunda,para fecundar na vida comum daquela moça,outra esperança. Quando a moça subiu naquele trem,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Mas também sabia que não poderia amá-la por si só.

domingo, 30 de maio de 2010

O (Des)Encanto

Imagem: José Boldt

Se havia algo naquele reino desencantado que jamais fora perdoado era o fato de alguém expressar o Amor fora dos dias, horas e locais expressamente determinados pelo cerimonial real.
Num lindo dia de sol sem igual, dois jovens que jamais se viram antes, de repente, tornaram-se amantes para toda a vida, a partir daquele mágico instante.
O rei velhaco - induzido pela rainha doida, que nas horas vagas transfigurava-se na bruxa Malamada -, condenou o belo casal a maldição: viverem pra sempre sem se tocar mais.
Com o cruel estratagema, a rainha, travestida de bruxa, decretou que somente poderiam tornar a se reencontrar no dia que os dois dessem de novo às mãos, algo improvável de acontecer.
Literalmente o moço e a moça foram plantados pelos soldados, cada qual de um dos lados da estrada, naquele terreno envolvido em um estranho pântano. Logo, ali enterrados até a cintura, naquele misterioso musgo que foi adentrando seus pés e pernas, criando raízes e cascas em torno do corpo dos dois, um silênio sepucral se fez.
Plantados na estrada que levava do bosque ao castelo, a maldição dos jovens amantes serviu de lição e medo aos demais que ousassem a descumprir as ordens reais. Nunca mais naquele reino se amou de tal forma enraizada.
Os dois foram condenados a viver tão próximos, mas plantados distantes um do outro. Passaram-se décadas, séculos, e as árvores resistiram ali, próximas uma da outra, crescendo, criando galhos e mais galhos, rumo ao céu. Muitos jovens estiveram por ali, nos séculos que se seguiram, amarrando cordas para balanços, usando facas para desenhar seus nomes dentro de um coração. Quando o corte era profundo, ao invés de seiva, corria um pequeno filete de sangue, e os novos amantes saiam horrorizados com a cena.
A estrada de chão batido tornou-se com o tempo de saibro, depois de pedra, por fim, de asfalto. A vila e o reino tornaram-se uma mega cidade, e aquele pequeno caminho, continuou lá, preservado na memória, por questões históricas e patrimoniais, com as duas árvores prostradas, enraizadas, quase entortadas diante do peso dos séculos e mais séculos, até que os seus galhos, dia a dia foram se aproximando, até se tocarem, e se tocando algo maravilhoso aconteceu: a maldição fora quebrada e os dois amantes, ainda com a aparência de antes, conservada por musgos, seivas e líquens, tornaram a viver, serem de novo humanos, até banharem-se na lagoa ali próxima.
Os dois se reconheceram de imediato, se abraçaram de forma voraz, voltando a se amar como gente. Mas a cidade, de repente, ficou num silencio ensurdecedor, nem mesmo os pássaros cantavam mais, todos revoaram para além mais.
Enquanto o moço e a moça, sempre de mãos dadas, passaram a refazer seu caminho do bosque ao castelo, agora um grande arranha-céu. A cada esquina foram surgindo do nada árvores enraizadas no meio da rua, das calçadas e dos carros, dentro e fora dos prédios, no meio das salas, dos quartos, algumas de pé, outras tombadas em estranhas posições...
Nenhum ser vivo de carne e osso, além dos dois, fora visto pelos arredores do reino desencantado, somente árvores e mais árvores, enraizadas em sua vidinha comum, de forma secular. Do lado do arranha-céu tinha uma pequena casa que resistia ao tempo e foi por ali que o moço e a moça, ainda apaixonados, resolveram de novo entrelaçar suas vidas, para nunca mais se distanciarem ainda que tão próximos...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Guia

(Desconheço autor da imagem)

O sol estava quase no centro do céu, quando o guia foi chamado para levar o jovem até o outro lado da mata fechada.
Como o homem era experiente e conhecia cada caminho da região, foi na frente, seguido de perto do jovem que tudo queria saber, conhecer...
No meio do caminho, apareceu uma rudimentar ponte de cordas, separando um lado do desfiladeiro do outro. A travessia era íngreme mas necessária. Lá embaixo, um rio profundo e num segundo o jovem quis voltar.
O guia disse que ia na frente e que o rapaz seguisse seus passos.
No meio da ponte, esta começou a ceder com o peso de ambos, o guia apressou o passo e o jovem ficou paralisado de medo...
A ponte cedeu de vez. O jovem ficou seguro apenas a uma das cordas, enquanto o guia descia pelo que restara da ponte. Com a mão estendida ao jovem, o homem maduro foi buscando forças para resgatar quem estava sob seus cuidados.
Depois de alguns minutos que pareceram horas, os dois chegaram ao topo. Ambos espanaram a poeira das roupas com as mãos. Dessa vez a aventura quase terminara mal.
O guia olhou em frente e disse sério ao outro: - Vamos embora, garoto! Estamos atrasados para nosso compromisso! O rapaz olhou pro relógio e espantado exclamou: - Nossa, pai, já está na hora do almoço e mamãe deve estar nos chamando!
Ali em frente a casa, no lugar de sempre, aguardava os herois e atrás deles ficara o imenso quintal da imaginação...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

No País dos Sonhos

Foto: Maria

Ele tinha certeza de que estava vivendo um sonho. Afinal, aquela mulher linda e maravilhosa ao seu redor, só poderia ser fruto de seu subconsciente, seu inconsciente ou algo mais profundo ainda... Como podia a mulher dos seus sonhos viver além dos próprios sonhos? - ele se perguntava a todo instante, se beliscando sem parar.
Era um dia como outro qualquer, mas aquele, para ele, era tudo, menos um dia como outro qualquer... Havia uma felicidade transbordante, e tudo era fruto daquela visão, miragem, sei lá, em forma de mulher ideal.
Tudo era perfeito demais, e ele sabia de antemão que perfeição não existia, além do verbete no dicionário de capa dura e amarelada dos dias que passam sem avisar. Então, se tudo era fruto de um sonho, ele quis viver cada segundo até que o sono viesse, como um infeliz mensageiro, despertá-lo de vez para a vida real.
Mas como era possível estar dentro de um sonho, e ainda ter sono? - pensava-se angustiado. Temia que, mesmo sonhando, ao acordar, enfim, ela nunca mais estivesse ao seu lado. E assim ele fez de tudo para não cochilar. Passearam de mãos dadas pela cidade, vagaram pelas ruas sem destino, até que chegaram a sua casa. Depois de uma noite de amor sem fim, ele, enfim, cansado, pestanejou - as janelas de sua alma, os olhos, se cerraram -, e logo atravessou a fronteira que leva ao País dos Sonhos, mesmo que acreditasse piamente estar vivendo, até aquele momento, tão-somente um sonho bom.
No dia seguinte, quando amanheceu, por incrível que pareça, a mulher dos sonhos continuava na mesma cama deitada, olhando sem ver o teto todo rachado. Mas era o homem que desaparecera sem deixar nenhum sinal...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O mergulho profundo

Imagem: Clarisse Regueiró

E ali estava eu, o mergulhador, junto com meu filho, em viagem de férias à pequena cidade dos meus pais, já idosos. Pouca coisa tinha mudado naquela terra, exceto eu mesmo, o mergulhador...
Meu filho queria conhecer cada local que ele muitas vezes vira no álbum de fotografias da família, em especial, a prainha onde eu e meu pai íamos nos banhar nos verões, entre pequenas embarcações, um local de águas paradas e rasas...
Nem tínhamos ainda desembarcado da lancha e meu filho gritou: Olha lá, pai! A prainha com os mesmos barcos daquelas fotos amareladas que você sempre me mostrou! Eles são coloridos! Vamos lá? Agora?
Não me fiz de rogado e com a mão de meu filho bem apertada fomos os dois para aquele local mágico de minha infância. De fato, poucas coisas haviam mudado, exceto que para o menino que eu fui um dia, tudo antes era imenso e agora, com o devido distanciamento no tempo-espaço, as coisas tomavam o seu devido lugar. O espelho mágico agora era um espelho de vidro tão-somente. Se o local estava praticamente intacto, eu , o mergulhador, já não era mais o mesmo menino que via tudo com um olhar mágico e fantástico.
Meu filho, excitado, quis entrar na água de imediato, com roupa e tudo. Lembrei-me que naquela prainha, três décadas antes, eu também tomava banho de cuecas com meu pai, e assim o fizemos. Era um dia de semana, como outro qualquer, com poucas pessoas nos arredores, mais pescadores indo pescar na lagoa adiante. Então, eu e meu filho, como cúmplices de um pequeno delito, deixamos sobre um barco encalhado no raso, nossas mochilas e roupas suadas, e somente de cuecas adentramos àquelas águas plácidas.
Depois de alguns instantes, meu reflexo na água parecia não mais me pertencer. Ficara distorcido pelas pequenas ondas que meu filho, numa imensa alegria, fazia ao meu redor. Dei alguns passos adiante e um pequeno buraco foi agigantando-se de forma inexplicável. Ou quem sabe pelo meu peso elevado. Algo dentro do mergulhador disse: aprofunde-se mais. E assim o fiz, respirando fundo e mergulhando naquelas águas rasas. Foram apenas alguns segundos...
Mas o inacreditável e o inexplicável aconteceu. Meu mergulho que era para ser breve e curto, diante da pouca profundidade do local, acabou sendo fundo demais, indo além da minha imaginação. Quando quase perdia o fôlego, resolvi subir à tona.
Ali encontrei meu filho ainda ao lado da embarcação, estranhamente com a pintura renovada. Olhei ao redor e as imagens estavam levemente alteradas, até o ar estava mais puro. Chamei meu menino pelo seu nome, mas ele sequer se virou, e quando o fez, pela minha insistência, o menino disse: Quem o senhor está chamando moço, se só estamos aqui eu e você? Naquele momento, gelei. Quis disfarçar e perguntei ao menino se ele estava só. Sua resposta provocou-me um arrepio: Não, meu pai estava aqui, mas deu um mergulho e ainda não voltou...
Diante do insólito, tentei me acalmar e não preocupar o menino com o sumiço de seu pai... Olhando-o bem, vi a incrível semelhança com as fotos amareladas de meu álbum de família e com meu filho também... Ele era a cara de meu garoto, mas na verdade se parecia muito mais comigo, quando tinha a sua idade. Essa constatação arrepiou-me mais ainda... E se... Não!, exclamei para mim mesmo, isso não pode estar acontecendo, não posso estar em frente a mim mesmo, só que trinta anos no passado! Esse paradoxo é impossível, diante das leis da física!, pensei em voz alta.
Não tive tempo sequer de me acostumar com o fato, pois quando pensava em aproveitar aquele momento para visitar as ruas e as pessoas de meu passado, eis que algumas bolhas de ar começaram a surgir próximo de onde eu estava em pé, com as águas pelo joelho. De forma instintiva, o mergulhador que vive em mim não pensou duas vezes e mergulhou em si e dentro d'água.
Quando voltei à tona, o menino ao meu redor parecia assustado... Sem saber em que época estava, perguntei a ele o que acontecera. O menino somente disse: Não sei pai, você mergulhou e voltou muito rápido, mas você não era você, e dizia que era meu avô... Somente hoje, entendi uma antiga lembrança que tive no passado de algo que pensei ser pura imaginação infantil...
Há certos mergulhos tão profundos que nos levam a sonhos perdidos, alguns parecendo reais, outros tão reais que parecem imaginação... (Nem sempre, nós, o mergulhador, temos tempo para fazer a devida despressurização emocional... Passamos tanto tempo querendo ser alguém e muitas vezes sequer somos nós mesmos... Salvo, quando em alguma poça d'água, encontramos um lago fundo para um mergulho profundo em nossa emoção perdida...).

domingo, 24 de janeiro de 2010

Palavras Roubadas


("Menina da boina verde" , Mily Possoz, 1930)

E depois fiquei ali, sem desgrudar os olhos do chão.
Era uma menina. E só. O decote nem tinha sentido. A blusa era bonita. E só. Mas o pai insistia em achar que tinha... e aqueles olhos que sempre falavam. Mania que o pai tinha... com a boca sempre tão pouco. E aquele calafrio na espinha que teimosamamente subia em direção ao pescoço sempre que isso acontecia. Como faca, cortante.
O silêncio. E só.
Os olhos então passeando rápido sobre as peças alinhadas milimetricamente pela mãe. Melhor não contrariar. Melhor. Sempre assim.
Se pelo menos falasse, se pelo menos me contasse uma história. Ou então, se já percebesse que não era mais sua menina de contar histórias na cama, dos dias que o mau tempo lhe prendia dentro de casa e que a chuva fazia uma poça debaixo da janela e eu ria quando dizia que era a tristeza de Deus, e os rios, mãos que represavam suas lágrimas, que me perguntasse sobre o menino que jogou flores pela janela do quarto, e do livro que eu escolhi para guardar a lembrança.
Os olhos que falavam. E só. E eu que nem sempre entendia. Dialeto difícil o do pai, as vezes.
O cobertor cobrindo o corpo, como o abraço do pai. Apertado. Ausente. Oito horas. O relógio da igreja anunciava.
O chão, os vincos desenhados sobre a madeira. O silêncio. E só.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Do lugar onde moram os sonhos


Imagem: Diana Angélica

Te conto agora, porque só agora eu sei.
O que tem atrás daquele morro, mãe? Sei não, menina. Mais morros e bois e fazendas, que é tudo que se tem por aqui. E cidade não tem? Na cidade é que moram os sonhos né mãe? Ah menina...Eu nem sei onde moram os sonhos. Se soubesse, te juro, não estaria mais aqui.
Nos livros moravam os sonhos. Isso ela ja sabia. Mas e o discurso de dona Laura, na formatura - dona Laura era boa nisso - dêem asas aos seus sonhos. E eu vi, nos olhos dela pousaram duas estrelas. Dona Laura sabia onde eles moravam. Sabia sim, que dava pra ver. Mas se sonhos podiam ter asas, porque então, nenhum voara até ali, não havia sonho nenhum ali. Lugar triste lugar sem sonho. Tão pequeno, devia ser isso. Sonhos não cabiam naquele lugar. Sonhos são coisas sempre grandes, e aquela vila, pacata. Quieta que só. Dava até pra ouvir o barulho da grama crescendo. Sonhos nao deviam sequer gostar de lugares assim. Ela também não. E a mãe, coitada. Sempre tão irritada. Era por isso. Passou a vida procurando...Mas dona Laura, sempre morou ali... E as pernas apoiadas na cerca, o corpo no chão, e a cabeça na direção do morro. Fim de tarde. E tem o quarto pra limpar, a louça pra lavar, e tem tanta coisa pra pensar. Irritada, como sempre, a mãe. O pensamento ausente em cada pio de passarinho. Pássaros são livres e sabem a cidade atras do morro. Um dia, um dia ela também saberia..E soube, e lembrou-se do tempo em que um morro apenas, cabia nos seus olhos. No alto, em direção da linha vermelha, onde o sol se escondia. Horizontes. E sonhos. Um lugar que nunca se consegue chegar. E cidades. E morros. Tantos agora...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O arranha-céu

Imagem: Autumn-Stairs Dianne Poinski

O menino que cresceu demais, acompanhou, primeiro da janela de casa e, depois que esta ameaçou desabar, fora dela, o crescimento da pequena cidade chamada de tão-somente Pequena Cidade.
O menino foi percebendo que o seu pequeno mundo, antes parecendo gigantesco, foi diminuindo a cada dia, enquanto a cidade em que o tempo se perdia sem tempo de se achar, foi aumentando a olhos vistos. Mas assim como o amor de pais com seus filhos, que só percebem que estes cresceram quando já são gente feita, o menino só percebeu que a sua Pequena Cidade pequena não era mais a mesma de sua infância perdida, quando após duas décadas distante, para lá retornou...
Muitas das casas da sua rua já não existiam mais, seus amigos já não o reconheciam mais também. Ele era um estranho em sua própria cidade, que cresceu como os filhos distantes dos pais...
Então, o menino que por fora já era homem feito, mas em seu interior não mudara em nada, resolveu ficar ali na sua antiga Pequena Cidade, já não mais tão pequena assim.
De vez em quando algum político quer mudar o nome da cidade, mas a tradição não permite. O povo da Pequena Cidade é muito tradicional, mantém tudo no seus devidos lugares, ainda que quase nada esteja mais nos seus devidos lugares...
O que mais encantou ao menino de volta a sua terra natal, justo na semana em que se comemorava o Natal, foi um enorme prédio erguido onde antes apenas havia uma pequena casa, a casa da sua infância perdida. Para os padrões daquele município que durante muitos anos sequer existira em algum mapa, aquele prédio de vários andares era um quase arranha-céu... Os moradores se revezaram aos fins de semana pra subir lá no alto e ter uma visão panorâmica de toda a região.
Quando o menino, já não mais tão menino assim, viu aquele prédio, resolveu ali morar... Como estava desempregado e tinha poucas economias, pode apenas alugar um pequeno quarto no primeiro andar. A partir de sua admissão numa empresa da cidade, logo seu poder aquisitivo lhe permitiu mudar para um quarto maior, no segundo andar, e assim foi se sucedendo a cada ano na vida do menino que cresceu demais, que bem de vida, foi melhorando de emprego e galgando andar após andar, até que já envelhecido e estabelecido na cidade, foi morar na cobertura do arranha-céu...
Curiosamente, quando lá chegou, tão elevado que estava, seus dedos bem que pareciam arranhar o céu da sua (mo)cidade, e desde que se instalou no melhor apartamento daquele prédio imenso para os padrões da Pequena Cidade, já não tão mais pequena assim, ele desapareceu quase que por encanto... Nunca mais ninguém ouviu falar dele, tornando-se mais uma lenda urbana entre outras mil...
Há quem diga que cada um tem dentro de si um pouco de pequena cidade e outro tanto de arranha-céu... Basta que o(a) menino(a) que existe em cada um não cresça demais e desapareça, além de sua cidade...

Observação: Microconto escrito ao som da canção Notting Better, da banda The Postal Service.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Morrer de Amor.


Nós sabíamos. Há vidas que só fazem sentido aos pares. Assim como duas peças de encaixe perfeito. Simetria. Corações são ímpares. Sozinhos vivem na incompletude.
Mas naquele dia você não voltou. O café à mesa. O chá de maçã com gengibre. O bolo de laranja. E o relógio que ja marcava sete horas. Você nunca voltou. O capim cresceu e sufocou a grama. Era você quem cuidava, o Zé disse que vai limpar, que está criando cobra. As flores sentem a sua falta. Eu juro. Nunca mais tiveram o mesmo viço. O canário morreu também, ficou triste por muitos dias, achei que voltaria a cantar. Quando queria chamar sua atenção ele batia as asas contra a gaiola, tomava um bicada de água e começava a cantar, lembra? Acho que ele morreu de tristeza. E o carteiro, coitado. Não sabia. Carta registrada para o seu Antonio. Seu Antonio, meu filho...o nó na garganta. Acho que ele entendeu. Assina a senhora então. A letra saiu tremida. Os móveis que estava restaurando, está tudo do mesmo jeito, amontoados no canto da garagem. E a missa do domingo, desde que nos casamos. O padre vem em casa, agora. Você voltava cantarolando Deus precisa de ti, muito mais que possas imaginar... Na volta, os biscoitos de polvilho para esperar a visita da tarde. Café amargo Teresa, você vivia a reclamar. Café era doce. Mal sabia você que muito mais amarga é essa saudade que me faz par desde que partiu. Saudade, solidão e eu, e esse vestido pra bordar. Eles eram tão lindos e quando terminava, antes de entregar eu tirava foto. Tão sem graça agora. E eu que te dizia que morria de amor. Tolice. Eu vivia de amor. Morro agora. Solidão não é quando a gente perde o outro. É quando a gente se perde da gente porque o outro é tão a gente que não se sabe mais quem partiu e quem ficou.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Palavras mágicas...

Foto: Bruno Abreu

Era um dia como outro qualquer, salvo aquela impressão de que aquele dia não era um como outro qualquer....
O menino tímido observava ao longe à menina de seus sonhos. Ambos sentados na praça sem nome, mas cada um em um banco distante. - Como os dois estavam distantes, ele pensara consigo mesmo, mas ao mesmo tempo, retrucava pra si: - Como a sentia tão próximo dele.
Era um lindo dia de sol. Cada um dos jovens, com um livro na mão, vivia em reinos distantes. O que os unia era a paixão pelos livros...
O menino, como de costume, iniciava a ler qualquer livro sempre pelo seu final. Dizia que todas as histórias que ele conhecia começavam sempre com o insosso “Era uma vez...”, e que sempre terminavam com o previsível “E foram felizes para sempre...”.
Para ele, tudo era história de faz de contas mesmo, pois nunca conhecera alguém que tivesse sido “feliz para sempre”. Nem seus pais, tampouco seus avós, muito menos os pais de seus amigos e os avós deles. E nem se referia a viverem juntos, pois juntos muitos deles viviam até morrer, mas não pareciam nada felizes para sempre... Não pareciam sequer um dia felizes, sempre distantes mesmo quando aparentavam estar juntos. Nunca de mãos dadas. Mãos dadas mesmo só se uniam em oração e quando sozinhos. Enfim, para o menino, histórias com final feliz só existiam no tempo do “Era uma vez”, com certeza. E em algum reino distante que só criava vida no papel.
Mas naquele dia, munido de um pedaço de luminoso lápis azul que encontrará ali no canto do banco da praça, ele começou a rabiscar no livro que pegara na biblioteca pública o complemento de diálogos, riscar, desenhar e acrescentar detalhes, reescrevendo todo o roteiro...
Foi nesse instante que algo mágico começou a acontecer no livro de histórias de fadas que a menina lia do outro lado da praça. As palavras começaram a se embaralhar, reagrupando-se e se organizando doutro modo, alterando a sequência tradicional da história narrada... A menina, como uma princesa encantada, foi encantando-se pela nova história, pois ela também já estava cansada de histórias de faz de contas com o mesmo início e fim...
E a cada palavra viva, algo na menina foi transformando-se... Uma estranha magia foi tomando conta de seu corpo e mente... E o menino, sem dar-se conta disso, foi dirigindo a nova história para um final em aberto, inacabado, coisa rara nos livros que ele e a menina conheciam... Mais fiel ao que via ao redor, o menino olhando fixo para a menina, passou a desenhá-la na história, junto ao seu próprio autorretrato rabiscado com o tal do luminoso lápis azul. Seu desejo era poder um dia conhecer a menina de seus sonhos, que ele agora sabia existir além de sua imaginação...
A menina de seus olhos, ao reconhecer no livro os traços do menino ali em frente - e que antes ela nunca o vira daquela forma -, passou a encantar-se com a possibilidade de deixar o menino desenhá-la da forma que lhe fizesse feliz. De longe, sorriu de um jeito enigmático, o mesmo sorriso que o menino antes desenhara em seu livro de rabiscar emoções.
E assim a história continuou com o final em aberto, ainda que vez por outra, todos os dias, mesmo quando os dois – menino e menina - não estavam frente a frente um do outro, ela abria o livro encantado pra ver que palavras mágicas o menino havia escrito ou desenhado somente para ela...
Num reino distante dali, um jovem poeta, filho de um pintor de retratos, desenhava aquela história toda, com o seu lápis azul, que fazia quem a lia acreditar que os sonhos escritos poderiam tornar-se um dia realidade, iniciando aquela história com um “Era uma vez” e terminando-a com um “E foram felizes para sempre...”

domingo, 20 de setembro de 2009

(Des)contando os dias


Ilustração: Issi Soizic

Dona Norma eu encontrei dia desses, estava indo para a festa de São Sebastião. Morávamos na mesma vila. Dona Norma é daquelas pessoas que não envelhecem nunca. É uma jovem de oitenta e seis anos, sempre faceira. Conserva ainda a mesma feição de quando a conheci. Bengala? Que nada. Anda a passos firmes, coluna bem reta, fala alto e forte. Usa uns colares bem grandes e brincos coloridos. Pinta o rosto e usa batom pouco discreto. "Passar da idade, minha filha...isso não existe" ela me explica. Só tem uma coisa que deixa dona Norma um pouco quieta. É o filho que mora tão longe. "Porque saudade Elisangela, é uma alegria que dói."

sábado, 19 de setembro de 2009

Regresso ao coração sem fim...

Imagem: Bruno Ehrs

Todos os dias eram gêmeos para aquele leitor compulsivo de livros antigos, confinado em seu mundo peculiar. Para ele, todos os dias eram cinzentos e siameses. Preso em si, sem amigos nem amores, convivia com seus anjos e demônios interiores, sempre em eterna disputa territorial. Os primeiros, diziam: pense antes de fazer; os outros, faça antes de pensar! Dessa turbulência existencial, eis que o leitor de livros de autores mortos, num dia cinzento como outro qualquer, recebeu pelo correio, sua encomenda atrasada: um novo livro antigo, obviamente, desses que se compra em sebos virtuais, já que ele se recusava a sair à rua, fazia tempos, desde que mais uma peste assolara o mundo. Tudo pedia por tele-entrega. Jamais abria a porta...
Naquele dia, parecido como outro qualquer, o carteiro bateu e ninguém atendeu. O aviso de entrega foi colocado embaixo da porta, como de costume, sendo assinado de imediato pelo morador, confinado no interior da casa. Enfiada a embalagem pela devida abertura, o morador correu pra abrir seu conteúdo. Mas pra sua surpresa e indignação, não se tratava do livro solicitado e parecia à primeira vista um desses de auto-ajuda. Esbravejou às paredes: “Não se pode confiar mais nem nos Correios!” Mas compulsivo que era, sem ter nada de novo para ler, passou a folhear o estranho livro, de capa dura, com letras douradas, com aspecto de novo, trazendo junto um CD. Era uma espécie de manual de auto-regressão hipnótica, no estilo terapia de vidas passadas. E assim, foi que na calada da noite o solitário iniciou sua viagem no tempo, sentado no meio da sala, em sua cadeira de balanço.
Colocado o CD no reprodutor de mídias, com o volume baixo, a auto-hipnose começou em contagem regressiva. A voz foi conduzindo seus passos, pedindo que se concentrasse e só retornasse ao seu tempo, quando ela ordenasse. Dito e feito. Relaxado com os comandos que lhe eram dados, o solitário passageiro da solidão foi sentindo-se acompanhado pela voz meiga e terna da misteriosa moça...
Pouco a pouco foi mergulhando no interior profundo do subconsciente, depois no inconsciente, sendo guiado pela mesma voz. Revisitou primeiro o dia anterior, depois a semana, o mês e o ano passados... Como um filme visto ao contrário, passou pelas cenas mais relevantes de sua vida. O primeiro amor, o primeiro trabalho, a primeira perda familiar, etc. De vez em quando a própria voz dava-lhe uma pausa na viagem, para que recuperasse o fôlego e continuasse o mergulho profundo ao interior de si mesmo... Parecia nadar em uma piscina quente, mas eram as memórias intra-uterinas que o faziam nadar naquele Mar da Tranquilidade.
Lá no fundo do oceano, nada pacífico das memórias, quando enfim chegou, ele encontrou uma tampa lacrada, e ao forçá-la foi tragado pelo ralo gigante que se formou... Quase se afogou, no exato instante que o CD apresentara um arranhão irrecuperável, que não permitia que a voz lhe desse o comando de retorno... E ali, depois de ultrapassar a fase intra-uterina, tragado pelo ralo, acabou naufragando numa estranha praia...
Socorrido pelos pescadores da vila, descobriu logo que fora confundido por um deles. Virgílio, todos assim o chamavam... Uma linda mulher, de nome Beatriz, veio correndo em sua direção. Dizia ser sua esposa. E o, antes, homem solitário, diante de sua beleza, de vez se encantou... Beatriz, a moça do cabelo liso, escorrido, dona de um sorriso que iluminava a praia àquela noite funda, como um pequeno farol... Levado para a “sua” casa, descobriu assombrado que lá todos os porta-retratos constavam de fato seu rosto... Que todos os moradores o conheciam e era considerado o pescador mais corajoso da povoação. Mas ele, que morava em 2009, numa cidade litorânea brasileira, levou um choque ao saber que para todos, menos ele, o ano em curso era 1909, e a povoação de pescadores encontrava-se em Portugal. Lembrou-se aos poucos da regressão que fizera no tempo e que algo teria dado errado. Provavelmente ficaria ali, aprisionado pra sempre, caso ninguém pudesse seu corpo retirar do estado de suspensão... Mas ao ver a beleza da esposa desconhecida até aquele instante, não ficou triste de estar confinado naquele período e lugar. Enfim, descobrira o amor longe de seu tempo e espaço...
E assim passaram-se os dias, até o dia que ele, um leitor compulsivo, descobrira algo que a esposa mantinha escondido a sete chaves: um misterioso livro de poemas. Seu título: Ruínas de Um Tempo Futuro. Quando começou a lê-lo algo estranho aconteceu... Os versos hipnóticos do livro o foram levando e elevando para um futuro idealizado pela mulher, muito parecido com o seu. Quando percebeu, seu corpo adormecido em 2009, começou a obedecer comandos vindos de 1909, até que num dos últimos poemas dizia: “Abra os seus olhos e seja sempre você!” E ele despertou de imediato, sem fôlego.
Nos dias que se seguiram, já no tempo presente, continuaram cinzentos, e ele não quis abrir mais nenhum livro. Mas um dia, a saudade da esposa que nunca tivera nesta vida, fez o homem procurar pelo livro para encomendar um novo exemplar, desta vez tendo o cuidado de examinar o CD, já na entrega. Mas logo o livro caiu de suas mãos ao perceber que o sobrenome da autora era o mesmo da poeta de seu passado... Na contracapa dizia que ela vivia em Portugal, era bisneta da poeta que morrera em 1909, quando seu grande amor desapareceu sem deixar sinais, apenas uma filha em seu ventre...
Naquele instante, seu coração sem fim não soube mais por qual caminho seguir... Com os dois livros em seu poder, o que regressava ao passado e o que revisitava o futuro, o solitário vasculhou a casa em busca de uma moeda para fazer um definitivo e paradoxal cara ou coroa...


Imagem extraída do site: Out of de bloon. Aproveite e visite.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nunca mais


Imagem: http://miniminimos.blogspot.com

Ela estava certa disso: Nunca mais viveria aquilo outra vez.
Ele explicou: Bom, eu acho nunca mais uma palavra forte demais para ser dita.
Ela achou que entendeu: Ta bom! Nunca mais falo.

O baile encantado

Ilustração: de Anne - Soline Sintès

A janela estava entreaberta e o vento sussurrava vez por outra o nome da menina, que deitada na cama, em sono profundo, imaginava o dia de seu primeiro baile, que ainda estava por chegar... No sonho, depois de por toda noite esperar, enfim, o seu pretendente misterioso veio ao seu encontro, caminhando de um jeito estranho, silencioso sem nada falar...
Era inverno, mas naquele dia fez um calor intenso, e à noite a brisa que assoprava as cortinas da janela do quarto da menina, vinha do sul, trazendo junto algo mais.
Enquanto sonhava com o príncipe encantado, a menina quase moça, de repente pôs-se de pé a bailar pelo quarto, abraçada ao vento, mas de fato ela continuava sonolenta, de olhos bem fechados, tateando no espaço. Caminhava às cegas pelo quarto, depois pela sala, até que ainda de olhos bem fechados e bailando sem parar, abriu a porta da rua e foi em direção ao quintal da casa, de onde a voz de seu príncipe a levava como que por encanto.
Quando tudo se encaminhava para o final feliz, a voz rouca do herói despertou a menina, que de repente viu-se de pijama e chinelos em pleno quintal. Diante dela, no chão, um enorme sapo cururu, coachando sem parar, como quem pede algum favor... Ela o chutou para longe...
Assustada, a menina-moça correu para dentro de casa, trancando-se no quarto e jogando-se sobre a cama, chorando, sem pregar os olhos até o amanhecer, quando enfim de novo adormeceu...
No seu sonho profundo e continuado, o príncipe com o olho roxo, veio novamente ao seu encalço, guiado apenas pelo misterioso par de chinelos que ele encontrara na escadaria do baile, antes de a menina sumir por alguns momentos, na noite sem luar...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Dois pra lá, dois pra cá


Imagem: Benjamin Lacombe

E era pela janela que os olhos miúdos sonhavam. Ajoelhada aos pés da cama quase encostada sobre a abertura retangular protegida pela rigidez do vidro, ela acompanhava o movimento das pessoas do lado de fora. Ouvia a música também. Era dia de baile. Ela gostava de baile. Mas tinha sete anos. E meninas de sete anos não vão a bailes - o pai dizia. Ela fora, uma única vez.
Gostava de acompanhar o ritual em que o rapaz um pouco tímido tentava encontrar entre as inúmeras moças presentes a que lhe faria par naquela dança. Corria os olhos pelo salão até que finalmente encontrava. Tomava um gole de uma bebida qualquer, talvez para ganhar coragem e finalmente dirigia-se à ela. Estendia-lhe a mão, ela sorria enquanto era conduzida ao centro do salão e dançavam lindamente, as vezes a noite toda.
As palmas a trouxeram de volta. O pai havia cumprido a promessa. Um lindo baile quando completasse quinze anos. O moço não ficou tímido quando a tirara pra dançar. Fora contratado pelo pai. Dançariam três músicas, nem uma a mais pra não atrasar o rapaz, a primeira, uma valsa. Estava tudo preparado: a hora, os passos, o olhar, o sorriso, até o beijo. Coisa sem graça - ela pensou, enquanto a música começava a tocar. Eram dois prá lá, dois pra cá.