terça-feira, 25 de agosto de 2009

Um amor inventado

Foto: Ana Rita Rodrigues

Os ponteiros do relógio de parede - soberano na sala daquela casa, uma residência como outra qualquer -, marcavam naquele instante uma hora e seis minutos... O seu tique-taque lembrava vagamente o movimento de um trem distante... O rapaz solitário, que todos os dias se acordava às seis horas em ponto, naquele dia, por engano, programou o relógio para despertá-lo às seis horas e um minuto... E foi ai que alguma coisa inusitada aconteceu...
Sabe-se lá, por qual razão que até mesmo a razão desconhece, naquela noite os mecanismos que regem o coração daquele homem sincero estavam com seus ciclos alterados, e os mecanismos da própria razão emperraram-se, por apenas um minuto, quando ele adormecido, adentrando ao misterioso País dos Sonhos, estava há sessenta segundos do despertar do curioso relógio que vinha passando de pai para filho, naquela família, desde sempre...
Era noite funda e o sono aprofundando-se em seu ser, quando ele, no País dos Sonhos, aproximou-se daquela mulher sem igual, que caminhava solitária em torno de uma pequena casa muito parecida com a sua e ao fundo uma construção imensa com duas torres... Clara, cabelos lisos e longos, assim como o vestido esvoaçante, parecia um quadro sem moldura... Com certeza, assemelhava-se a uma pintura impressionista, e uma calorosa impressão no jovem, aquela moça etérea provocou...
Em sessenta segundos ele apenas pode vê-la aparecer e se dissipar nas brumas do sonho. Logo o relógio o despertou daquele breve torpor. Acordou assustado, com a sensação de que tudo era quase real... Olhou em volta, mas o quarto estava vazio... Apenas um estranho perfume de flor no ar...
Nos dias que se seguiram, nunca mais se repetiu aquela sensação, até o dia que ele lembrou-se de replicar o mesmo horário do seu primeiro despertar imprevisto: às seis horas e um minuto. Dito e feito. Eis que no horário marcado, sessenta segundos antes, ele ainda dormindo, naquele estado em que o rápido movimento do olhar simula o estado de quem está acordado, aparece em seus sonhos a mais bela moça de branco que já vira em vida, usando brincos dourados, com o sorriso enigmático, a pele clara, na flor da idade, com uma maravilhosa e curiosa flor-de-lis nos cabelos... Trinta segundos transcorreram para ele dar-se conta de sua presença por completo. Nos demais trinta segundos, quando ensaiou uma aproximação, eis que o despertador quebrou o encanto, trazendo-o inexoravelmente ao mundo real...
Nas noites seguintes, sempre repetindo aquele fabuloso ritual – deitando-se a uma hora e seis minutos e despertando às seis horas e um minuto -, em breves sessenta segundos foi encontrando a mulher de seus sonhos que tornou-se a sua amada, mas que ele nunca conseguia a ela de todo se declarar... Iniciava uma frase, e somente no dia seguinte, um minuto antes de despertador vibrar, é que ele conseguia ouvir sua resposta, e assim aconteceram todos os encontros mágicos, durante exatos dois meses... Ele vivendo dentro de um sonho quase real, e ao despertar para a vida, vivia de olhos abertos sonhando com o encantado reencontro...
Ao sexagésimo primeiro dia, quando enfim declararia todo o seu amor àquela mulher impressionante, preferiu não deixar mais o despertador ligado... Assim que pode, sem o relógio para o despertar mais, reencontrara a mulher de seus sonhos, vivendo uma bela história sem fim, no País dos Sonhos, com seu grande amor. Seu nome era Angel, e ali, sempre ao seu lado, viveria pra sempre se nenhum barulho no mundo real o trouxesse de volta. Naquele mundo mágico ela era a Princesa do Brinco de Ouro... Naquele mundo estranho, cada segundo do mundo, passado o primeiro minuto, equivalia a um ano...
Frustrado e perdidamente apaixonado, diante da impossibilidade de um encontro fora daquele reino, o jovem, naquele mundo foi viver, torcendo para que o seu relógio biológico, em seu tique-taque de trem que passa sem parar naquela estação, só viesse a despertá-lo daquele sonho bom depois de algumas horas, que ali naquela terra de magia, equivaleriam há uma vida inteira. Ali, passado o fatídico um minuto, o tempo dos relógios não imperava mais, custando a passar... E assim foi o que aconteceu... O jovem não perdeu tempo; sabendo que cada segundo valia ouro, e cada minuto uma preciosidade. Foi desse jeito que o Cavaleiro Que Veio do Nada, então, desposou a dama, filha primogênita do rei, e foi com ela morar indefinidamente em seu castelo medieval...
Enquanto isso, no reino dos homens reais sem nenhuma majestade, o tempo seguiu o seu curso normal, com o relógio de parede em seu tique-taque militar, fumegando e arrastando seus vagões do lado de cá; contornando as curvas dos rios e morros, seguindo seu trajeto cheio de altos e baixos, até o momento em que o jovem viesse um dia, por si só, a despertar...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Control + Alt + Delete

Foto: Mariah

O livro estava aberto em asas postas ao voo longo da imaginação, justo na página em que dizia: “Há mais mistérios entre o céu e a terra que possa supor nossa vã filosofia...” Na biblioteca vazia, os livros e os seus autores mortos conviviam em paz... Nas ruas desertas, o silêncio era ensurdecedor... No rádio de um carro deixado para trás, tocava no sistema autoreverse a canção The Delicate Sound of Thunder...
Uma misteriosa epidemia confinou todos em suas casas... O contágio era feito pelo ar. Abraçar, beijar, exteriorizar qualquer tipo de emoção era fatal... A reclusão foi o melhor caminho para conter seu efeito letal... Como lagartas em um casulo, as pessoas confinaram-se em cubículos individuais, depois trancaram-se dentro de si mesmas. Assim sobreviveriam até que a Cura fosse encontrada para esse novo mal do século.
Em casa, Adam Bah, um escritor solitário, antes mesmo do surto aparecer em sua região, relia como total devoção a um livro especial, como quem procura em suas páginas e linhas alguma pista para aquilo tudo. O Amor nos Tempos do Cólera, de autoria de um escritor, mescla de poeta com profeta, passara a ser seu livro de cabeceira. Ali nas entrelinhas ele julgava ter a resposta...
Com o mundo inteiro recluso, o que salvou parte da população sobrevivente foram as máquinas, em especial, a rede mundial de computadores que interligava as pessoas mundo afora, sem precisarem sair de casa. Reclusa, restara à Humanidade apenas interagir a distância. E assim passaram-se os dias, os meses e os anos. Experiências feitas em laboratório, com estranhas pílulas coloridas, com sabores de alimentos, davam vitaminas e proteínas às pessoas. As encomendas eram feitas aos robôs que também manufaturavam, além de alimentos, remédios, roupas, tudo mais, e enviavam o pedido ao vivente, via correio. Entrega feita por seres autômatos.
Na porta da casa havia abertura que esterilizava tudo, para só então serem consumidas pelo comprador... Ninguém mais saiu de seu cubículo em anos. Os relacionamentos eram feitos via máquina. A tecnologia sofisticara-se por conta das novas necessidades. Holografias passaram a ter, além de forma, perfume, toque, consistência. As mensagens eram vistas e sentidas como reais. De vez quando alguém sumia do mundo digital, mas os sobreviventes creditavam isso ás relações descartáveis... Tudo parecia ter voltado à normalidade, até o dia em que até mesmo os serviços ficaram comprometidos pelo desgaste das máquinas, que por mais inventivas que fossem, precisavam de comandos humanos para superar a imprevisibilidade do tempo e da vida. Sem a perspicácia humana, sua contraditória racionalidade e sua intuitiva emotividade, as máquinas extremamente racionais foram repetindo padrões previsíveis de comportamento. Com o tempo, os comandos travaram e como gagos, ficaram repetindo-se como dízima periódica.
Quando a energia acabou, por falta de manutenção dos cabos deteriorados, por falta de reparos nas usinas e outros investimentos, o mundo ficou em total escuridão. Sem as máquinas, as pessoas sentiram-se de volta aos tempos da Caverna. Bah, sem ter o que fazer, sem o sistema de ar refrigerado pra ventilar seu cubículo, teve que destrancar-se por dentro primeiro, para depois abrir a porta que o levou à rua e ao mundo real. Lá fora o dia era lindo, de um céu azul profundo sem igual. No entardecer, duas luas pairavam na abóbada celeste. Uma delas era o satélite natural da Terra, e a outra, de cor magenta, ele não sabia ainda, mas era Marte em rota de aproximação...
O mundo, como ele conhecera antes do confinamento não existia mais. Ruas vazias, casas também, tudo em total solidão... Então, Adam Bah vagou sem destino, até onde suas pernas e forças puderam chegar... Era noite fria quando, enfim, cansado, no banco da praça vazia, começou a rezar uma esquecida oração. Adormecera sentado, até que uma chama breve o acordou. De olhos bem abertos viu sentada ao seu lado uma bela mulher de olhos penetrantes que com a mão quente, aquecia sua mão. Por instinto e reflexo, num movimento brusco retirou a própria mão. Lembrou-se da proibição do contato, do afeto, do risco de vida que isso implicava. Mas a moça, com o olhar terno, disse: "Não é preciso mais temer. Tudo passou e nós sobrevivemos... Olhe ao redor!”
Naquele momento, o delicado som do trovão rebombou em seu peito. E ele, meio que sem jeito, foi aproximando-se da mulher e a abraçando com todo o carinho do mundo, como se a conhecesse desde sempre... Sem nada esperar em troca além daquele calor humano quase esquecido... Seu nome era Eve. Para ele (que ainda não sabia disso) e para o resto do mundo – que já estava a par dessa história desde sempre - , ela era a única sobre a face da Terra (assim como o jovem, na questão de gênero, também o era.) E assim reinicializou-se a Vida sobre o despovoado terceiro planeta, com se fosse um imprevisto comando e combinação de teclas nalgum imenso e invisível computador... A teologia e a tecnologia aproximaram-se misteriosamente desde então...