quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Do lugar onde moram os sonhos


Imagem: Diana Angélica

Te conto agora, porque só agora eu sei.
O que tem atrás daquele morro, mãe? Sei não, menina. Mais morros e bois e fazendas, que é tudo que se tem por aqui. E cidade não tem? Na cidade é que moram os sonhos né mãe? Ah menina...Eu nem sei onde moram os sonhos. Se soubesse, te juro, não estaria mais aqui.
Nos livros moravam os sonhos. Isso ela ja sabia. Mas e o discurso de dona Laura, na formatura - dona Laura era boa nisso - dêem asas aos seus sonhos. E eu vi, nos olhos dela pousaram duas estrelas. Dona Laura sabia onde eles moravam. Sabia sim, que dava pra ver. Mas se sonhos podiam ter asas, porque então, nenhum voara até ali, não havia sonho nenhum ali. Lugar triste lugar sem sonho. Tão pequeno, devia ser isso. Sonhos não cabiam naquele lugar. Sonhos são coisas sempre grandes, e aquela vila, pacata. Quieta que só. Dava até pra ouvir o barulho da grama crescendo. Sonhos nao deviam sequer gostar de lugares assim. Ela também não. E a mãe, coitada. Sempre tão irritada. Era por isso. Passou a vida procurando...Mas dona Laura, sempre morou ali... E as pernas apoiadas na cerca, o corpo no chão, e a cabeça na direção do morro. Fim de tarde. E tem o quarto pra limpar, a louça pra lavar, e tem tanta coisa pra pensar. Irritada, como sempre, a mãe. O pensamento ausente em cada pio de passarinho. Pássaros são livres e sabem a cidade atras do morro. Um dia, um dia ela também saberia..E soube, e lembrou-se do tempo em que um morro apenas, cabia nos seus olhos. No alto, em direção da linha vermelha, onde o sol se escondia. Horizontes. E sonhos. Um lugar que nunca se consegue chegar. E cidades. E morros. Tantos agora...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O arranha-céu

Imagem: Autumn-Stairs Dianne Poinski

O menino que cresceu demais, acompanhou, primeiro da janela de casa e, depois que esta ameaçou desabar, fora dela, o crescimento da pequena cidade chamada de tão-somente Pequena Cidade.
O menino foi percebendo que o seu pequeno mundo, antes parecendo gigantesco, foi diminuindo a cada dia, enquanto a cidade em que o tempo se perdia sem tempo de se achar, foi aumentando a olhos vistos. Mas assim como o amor de pais com seus filhos, que só percebem que estes cresceram quando já são gente feita, o menino só percebeu que a sua Pequena Cidade pequena não era mais a mesma de sua infância perdida, quando após duas décadas distante, para lá retornou...
Muitas das casas da sua rua já não existiam mais, seus amigos já não o reconheciam mais também. Ele era um estranho em sua própria cidade, que cresceu como os filhos distantes dos pais...
Então, o menino que por fora já era homem feito, mas em seu interior não mudara em nada, resolveu ficar ali na sua antiga Pequena Cidade, já não mais tão pequena assim.
De vez em quando algum político quer mudar o nome da cidade, mas a tradição não permite. O povo da Pequena Cidade é muito tradicional, mantém tudo no seus devidos lugares, ainda que quase nada esteja mais nos seus devidos lugares...
O que mais encantou ao menino de volta a sua terra natal, justo na semana em que se comemorava o Natal, foi um enorme prédio erguido onde antes apenas havia uma pequena casa, a casa da sua infância perdida. Para os padrões daquele município que durante muitos anos sequer existira em algum mapa, aquele prédio de vários andares era um quase arranha-céu... Os moradores se revezaram aos fins de semana pra subir lá no alto e ter uma visão panorâmica de toda a região.
Quando o menino, já não mais tão menino assim, viu aquele prédio, resolveu ali morar... Como estava desempregado e tinha poucas economias, pode apenas alugar um pequeno quarto no primeiro andar. A partir de sua admissão numa empresa da cidade, logo seu poder aquisitivo lhe permitiu mudar para um quarto maior, no segundo andar, e assim foi se sucedendo a cada ano na vida do menino que cresceu demais, que bem de vida, foi melhorando de emprego e galgando andar após andar, até que já envelhecido e estabelecido na cidade, foi morar na cobertura do arranha-céu...
Curiosamente, quando lá chegou, tão elevado que estava, seus dedos bem que pareciam arranhar o céu da sua (mo)cidade, e desde que se instalou no melhor apartamento daquele prédio imenso para os padrões da Pequena Cidade, já não tão mais pequena assim, ele desapareceu quase que por encanto... Nunca mais ninguém ouviu falar dele, tornando-se mais uma lenda urbana entre outras mil...
Há quem diga que cada um tem dentro de si um pouco de pequena cidade e outro tanto de arranha-céu... Basta que o(a) menino(a) que existe em cada um não cresça demais e desapareça, além de sua cidade...

Observação: Microconto escrito ao som da canção Notting Better, da banda The Postal Service.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Morrer de Amor.


Nós sabíamos. Há vidas que só fazem sentido aos pares. Assim como duas peças de encaixe perfeito. Simetria. Corações são ímpares. Sozinhos vivem na incompletude.
Mas naquele dia você não voltou. O café à mesa. O chá de maçã com gengibre. O bolo de laranja. E o relógio que ja marcava sete horas. Você nunca voltou. O capim cresceu e sufocou a grama. Era você quem cuidava, o Zé disse que vai limpar, que está criando cobra. As flores sentem a sua falta. Eu juro. Nunca mais tiveram o mesmo viço. O canário morreu também, ficou triste por muitos dias, achei que voltaria a cantar. Quando queria chamar sua atenção ele batia as asas contra a gaiola, tomava um bicada de água e começava a cantar, lembra? Acho que ele morreu de tristeza. E o carteiro, coitado. Não sabia. Carta registrada para o seu Antonio. Seu Antonio, meu filho...o nó na garganta. Acho que ele entendeu. Assina a senhora então. A letra saiu tremida. Os móveis que estava restaurando, está tudo do mesmo jeito, amontoados no canto da garagem. E a missa do domingo, desde que nos casamos. O padre vem em casa, agora. Você voltava cantarolando Deus precisa de ti, muito mais que possas imaginar... Na volta, os biscoitos de polvilho para esperar a visita da tarde. Café amargo Teresa, você vivia a reclamar. Café era doce. Mal sabia você que muito mais amarga é essa saudade que me faz par desde que partiu. Saudade, solidão e eu, e esse vestido pra bordar. Eles eram tão lindos e quando terminava, antes de entregar eu tirava foto. Tão sem graça agora. E eu que te dizia que morria de amor. Tolice. Eu vivia de amor. Morro agora. Solidão não é quando a gente perde o outro. É quando a gente se perde da gente porque o outro é tão a gente que não se sabe mais quem partiu e quem ficou.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Palavras mágicas...

Foto: Bruno Abreu

Era um dia como outro qualquer, salvo aquela impressão de que aquele dia não era um como outro qualquer....
O menino tímido observava ao longe à menina de seus sonhos. Ambos sentados na praça sem nome, mas cada um em um banco distante. - Como os dois estavam distantes, ele pensara consigo mesmo, mas ao mesmo tempo, retrucava pra si: - Como a sentia tão próximo dele.
Era um lindo dia de sol. Cada um dos jovens, com um livro na mão, vivia em reinos distantes. O que os unia era a paixão pelos livros...
O menino, como de costume, iniciava a ler qualquer livro sempre pelo seu final. Dizia que todas as histórias que ele conhecia começavam sempre com o insosso “Era uma vez...”, e que sempre terminavam com o previsível “E foram felizes para sempre...”.
Para ele, tudo era história de faz de contas mesmo, pois nunca conhecera alguém que tivesse sido “feliz para sempre”. Nem seus pais, tampouco seus avós, muito menos os pais de seus amigos e os avós deles. E nem se referia a viverem juntos, pois juntos muitos deles viviam até morrer, mas não pareciam nada felizes para sempre... Não pareciam sequer um dia felizes, sempre distantes mesmo quando aparentavam estar juntos. Nunca de mãos dadas. Mãos dadas mesmo só se uniam em oração e quando sozinhos. Enfim, para o menino, histórias com final feliz só existiam no tempo do “Era uma vez”, com certeza. E em algum reino distante que só criava vida no papel.
Mas naquele dia, munido de um pedaço de luminoso lápis azul que encontrará ali no canto do banco da praça, ele começou a rabiscar no livro que pegara na biblioteca pública o complemento de diálogos, riscar, desenhar e acrescentar detalhes, reescrevendo todo o roteiro...
Foi nesse instante que algo mágico começou a acontecer no livro de histórias de fadas que a menina lia do outro lado da praça. As palavras começaram a se embaralhar, reagrupando-se e se organizando doutro modo, alterando a sequência tradicional da história narrada... A menina, como uma princesa encantada, foi encantando-se pela nova história, pois ela também já estava cansada de histórias de faz de contas com o mesmo início e fim...
E a cada palavra viva, algo na menina foi transformando-se... Uma estranha magia foi tomando conta de seu corpo e mente... E o menino, sem dar-se conta disso, foi dirigindo a nova história para um final em aberto, inacabado, coisa rara nos livros que ele e a menina conheciam... Mais fiel ao que via ao redor, o menino olhando fixo para a menina, passou a desenhá-la na história, junto ao seu próprio autorretrato rabiscado com o tal do luminoso lápis azul. Seu desejo era poder um dia conhecer a menina de seus sonhos, que ele agora sabia existir além de sua imaginação...
A menina de seus olhos, ao reconhecer no livro os traços do menino ali em frente - e que antes ela nunca o vira daquela forma -, passou a encantar-se com a possibilidade de deixar o menino desenhá-la da forma que lhe fizesse feliz. De longe, sorriu de um jeito enigmático, o mesmo sorriso que o menino antes desenhara em seu livro de rabiscar emoções.
E assim a história continuou com o final em aberto, ainda que vez por outra, todos os dias, mesmo quando os dois – menino e menina - não estavam frente a frente um do outro, ela abria o livro encantado pra ver que palavras mágicas o menino havia escrito ou desenhado somente para ela...
Num reino distante dali, um jovem poeta, filho de um pintor de retratos, desenhava aquela história toda, com o seu lápis azul, que fazia quem a lia acreditar que os sonhos escritos poderiam tornar-se um dia realidade, iniciando aquela história com um “Era uma vez” e terminando-a com um “E foram felizes para sempre...”

domingo, 20 de setembro de 2009

(Des)contando os dias


Ilustração: Issi Soizic

Dona Norma eu encontrei dia desses, estava indo para a festa de São Sebastião. Morávamos na mesma vila. Dona Norma é daquelas pessoas que não envelhecem nunca. É uma jovem de oitenta e seis anos, sempre faceira. Conserva ainda a mesma feição de quando a conheci. Bengala? Que nada. Anda a passos firmes, coluna bem reta, fala alto e forte. Usa uns colares bem grandes e brincos coloridos. Pinta o rosto e usa batom pouco discreto. "Passar da idade, minha filha...isso não existe" ela me explica. Só tem uma coisa que deixa dona Norma um pouco quieta. É o filho que mora tão longe. "Porque saudade Elisangela, é uma alegria que dói."

sábado, 19 de setembro de 2009

Regresso ao coração sem fim...

Imagem: Bruno Ehrs

Todos os dias eram gêmeos para aquele leitor compulsivo de livros antigos, confinado em seu mundo peculiar. Para ele, todos os dias eram cinzentos e siameses. Preso em si, sem amigos nem amores, convivia com seus anjos e demônios interiores, sempre em eterna disputa territorial. Os primeiros, diziam: pense antes de fazer; os outros, faça antes de pensar! Dessa turbulência existencial, eis que o leitor de livros de autores mortos, num dia cinzento como outro qualquer, recebeu pelo correio, sua encomenda atrasada: um novo livro antigo, obviamente, desses que se compra em sebos virtuais, já que ele se recusava a sair à rua, fazia tempos, desde que mais uma peste assolara o mundo. Tudo pedia por tele-entrega. Jamais abria a porta...
Naquele dia, parecido como outro qualquer, o carteiro bateu e ninguém atendeu. O aviso de entrega foi colocado embaixo da porta, como de costume, sendo assinado de imediato pelo morador, confinado no interior da casa. Enfiada a embalagem pela devida abertura, o morador correu pra abrir seu conteúdo. Mas pra sua surpresa e indignação, não se tratava do livro solicitado e parecia à primeira vista um desses de auto-ajuda. Esbravejou às paredes: “Não se pode confiar mais nem nos Correios!” Mas compulsivo que era, sem ter nada de novo para ler, passou a folhear o estranho livro, de capa dura, com letras douradas, com aspecto de novo, trazendo junto um CD. Era uma espécie de manual de auto-regressão hipnótica, no estilo terapia de vidas passadas. E assim, foi que na calada da noite o solitário iniciou sua viagem no tempo, sentado no meio da sala, em sua cadeira de balanço.
Colocado o CD no reprodutor de mídias, com o volume baixo, a auto-hipnose começou em contagem regressiva. A voz foi conduzindo seus passos, pedindo que se concentrasse e só retornasse ao seu tempo, quando ela ordenasse. Dito e feito. Relaxado com os comandos que lhe eram dados, o solitário passageiro da solidão foi sentindo-se acompanhado pela voz meiga e terna da misteriosa moça...
Pouco a pouco foi mergulhando no interior profundo do subconsciente, depois no inconsciente, sendo guiado pela mesma voz. Revisitou primeiro o dia anterior, depois a semana, o mês e o ano passados... Como um filme visto ao contrário, passou pelas cenas mais relevantes de sua vida. O primeiro amor, o primeiro trabalho, a primeira perda familiar, etc. De vez em quando a própria voz dava-lhe uma pausa na viagem, para que recuperasse o fôlego e continuasse o mergulho profundo ao interior de si mesmo... Parecia nadar em uma piscina quente, mas eram as memórias intra-uterinas que o faziam nadar naquele Mar da Tranquilidade.
Lá no fundo do oceano, nada pacífico das memórias, quando enfim chegou, ele encontrou uma tampa lacrada, e ao forçá-la foi tragado pelo ralo gigante que se formou... Quase se afogou, no exato instante que o CD apresentara um arranhão irrecuperável, que não permitia que a voz lhe desse o comando de retorno... E ali, depois de ultrapassar a fase intra-uterina, tragado pelo ralo, acabou naufragando numa estranha praia...
Socorrido pelos pescadores da vila, descobriu logo que fora confundido por um deles. Virgílio, todos assim o chamavam... Uma linda mulher, de nome Beatriz, veio correndo em sua direção. Dizia ser sua esposa. E o, antes, homem solitário, diante de sua beleza, de vez se encantou... Beatriz, a moça do cabelo liso, escorrido, dona de um sorriso que iluminava a praia àquela noite funda, como um pequeno farol... Levado para a “sua” casa, descobriu assombrado que lá todos os porta-retratos constavam de fato seu rosto... Que todos os moradores o conheciam e era considerado o pescador mais corajoso da povoação. Mas ele, que morava em 2009, numa cidade litorânea brasileira, levou um choque ao saber que para todos, menos ele, o ano em curso era 1909, e a povoação de pescadores encontrava-se em Portugal. Lembrou-se aos poucos da regressão que fizera no tempo e que algo teria dado errado. Provavelmente ficaria ali, aprisionado pra sempre, caso ninguém pudesse seu corpo retirar do estado de suspensão... Mas ao ver a beleza da esposa desconhecida até aquele instante, não ficou triste de estar confinado naquele período e lugar. Enfim, descobrira o amor longe de seu tempo e espaço...
E assim passaram-se os dias, até o dia que ele, um leitor compulsivo, descobrira algo que a esposa mantinha escondido a sete chaves: um misterioso livro de poemas. Seu título: Ruínas de Um Tempo Futuro. Quando começou a lê-lo algo estranho aconteceu... Os versos hipnóticos do livro o foram levando e elevando para um futuro idealizado pela mulher, muito parecido com o seu. Quando percebeu, seu corpo adormecido em 2009, começou a obedecer comandos vindos de 1909, até que num dos últimos poemas dizia: “Abra os seus olhos e seja sempre você!” E ele despertou de imediato, sem fôlego.
Nos dias que se seguiram, já no tempo presente, continuaram cinzentos, e ele não quis abrir mais nenhum livro. Mas um dia, a saudade da esposa que nunca tivera nesta vida, fez o homem procurar pelo livro para encomendar um novo exemplar, desta vez tendo o cuidado de examinar o CD, já na entrega. Mas logo o livro caiu de suas mãos ao perceber que o sobrenome da autora era o mesmo da poeta de seu passado... Na contracapa dizia que ela vivia em Portugal, era bisneta da poeta que morrera em 1909, quando seu grande amor desapareceu sem deixar sinais, apenas uma filha em seu ventre...
Naquele instante, seu coração sem fim não soube mais por qual caminho seguir... Com os dois livros em seu poder, o que regressava ao passado e o que revisitava o futuro, o solitário vasculhou a casa em busca de uma moeda para fazer um definitivo e paradoxal cara ou coroa...


Imagem extraída do site: Out of de bloon. Aproveite e visite.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nunca mais


Imagem: http://miniminimos.blogspot.com

Ela estava certa disso: Nunca mais viveria aquilo outra vez.
Ele explicou: Bom, eu acho nunca mais uma palavra forte demais para ser dita.
Ela achou que entendeu: Ta bom! Nunca mais falo.

O baile encantado

Ilustração: de Anne - Soline Sintès

A janela estava entreaberta e o vento sussurrava vez por outra o nome da menina, que deitada na cama, em sono profundo, imaginava o dia de seu primeiro baile, que ainda estava por chegar... No sonho, depois de por toda noite esperar, enfim, o seu pretendente misterioso veio ao seu encontro, caminhando de um jeito estranho, silencioso sem nada falar...
Era inverno, mas naquele dia fez um calor intenso, e à noite a brisa que assoprava as cortinas da janela do quarto da menina, vinha do sul, trazendo junto algo mais.
Enquanto sonhava com o príncipe encantado, a menina quase moça, de repente pôs-se de pé a bailar pelo quarto, abraçada ao vento, mas de fato ela continuava sonolenta, de olhos bem fechados, tateando no espaço. Caminhava às cegas pelo quarto, depois pela sala, até que ainda de olhos bem fechados e bailando sem parar, abriu a porta da rua e foi em direção ao quintal da casa, de onde a voz de seu príncipe a levava como que por encanto.
Quando tudo se encaminhava para o final feliz, a voz rouca do herói despertou a menina, que de repente viu-se de pijama e chinelos em pleno quintal. Diante dela, no chão, um enorme sapo cururu, coachando sem parar, como quem pede algum favor... Ela o chutou para longe...
Assustada, a menina-moça correu para dentro de casa, trancando-se no quarto e jogando-se sobre a cama, chorando, sem pregar os olhos até o amanhecer, quando enfim de novo adormeceu...
No seu sonho profundo e continuado, o príncipe com o olho roxo, veio novamente ao seu encalço, guiado apenas pelo misterioso par de chinelos que ele encontrara na escadaria do baile, antes de a menina sumir por alguns momentos, na noite sem luar...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Dois pra lá, dois pra cá


Imagem: Benjamin Lacombe

E era pela janela que os olhos miúdos sonhavam. Ajoelhada aos pés da cama quase encostada sobre a abertura retangular protegida pela rigidez do vidro, ela acompanhava o movimento das pessoas do lado de fora. Ouvia a música também. Era dia de baile. Ela gostava de baile. Mas tinha sete anos. E meninas de sete anos não vão a bailes - o pai dizia. Ela fora, uma única vez.
Gostava de acompanhar o ritual em que o rapaz um pouco tímido tentava encontrar entre as inúmeras moças presentes a que lhe faria par naquela dança. Corria os olhos pelo salão até que finalmente encontrava. Tomava um gole de uma bebida qualquer, talvez para ganhar coragem e finalmente dirigia-se à ela. Estendia-lhe a mão, ela sorria enquanto era conduzida ao centro do salão e dançavam lindamente, as vezes a noite toda.
As palmas a trouxeram de volta. O pai havia cumprido a promessa. Um lindo baile quando completasse quinze anos. O moço não ficou tímido quando a tirara pra dançar. Fora contratado pelo pai. Dançariam três músicas, nem uma a mais pra não atrasar o rapaz, a primeira, uma valsa. Estava tudo preparado: a hora, os passos, o olhar, o sorriso, até o beijo. Coisa sem graça - ela pensou, enquanto a música começava a tocar. Eram dois prá lá, dois pra cá.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Um amor inventado

Foto: Ana Rita Rodrigues

Os ponteiros do relógio de parede - soberano na sala daquela casa, uma residência como outra qualquer -, marcavam naquele instante uma hora e seis minutos... O seu tique-taque lembrava vagamente o movimento de um trem distante... O rapaz solitário, que todos os dias se acordava às seis horas em ponto, naquele dia, por engano, programou o relógio para despertá-lo às seis horas e um minuto... E foi ai que alguma coisa inusitada aconteceu...
Sabe-se lá, por qual razão que até mesmo a razão desconhece, naquela noite os mecanismos que regem o coração daquele homem sincero estavam com seus ciclos alterados, e os mecanismos da própria razão emperraram-se, por apenas um minuto, quando ele adormecido, adentrando ao misterioso País dos Sonhos, estava há sessenta segundos do despertar do curioso relógio que vinha passando de pai para filho, naquela família, desde sempre...
Era noite funda e o sono aprofundando-se em seu ser, quando ele, no País dos Sonhos, aproximou-se daquela mulher sem igual, que caminhava solitária em torno de uma pequena casa muito parecida com a sua e ao fundo uma construção imensa com duas torres... Clara, cabelos lisos e longos, assim como o vestido esvoaçante, parecia um quadro sem moldura... Com certeza, assemelhava-se a uma pintura impressionista, e uma calorosa impressão no jovem, aquela moça etérea provocou...
Em sessenta segundos ele apenas pode vê-la aparecer e se dissipar nas brumas do sonho. Logo o relógio o despertou daquele breve torpor. Acordou assustado, com a sensação de que tudo era quase real... Olhou em volta, mas o quarto estava vazio... Apenas um estranho perfume de flor no ar...
Nos dias que se seguiram, nunca mais se repetiu aquela sensação, até o dia que ele lembrou-se de replicar o mesmo horário do seu primeiro despertar imprevisto: às seis horas e um minuto. Dito e feito. Eis que no horário marcado, sessenta segundos antes, ele ainda dormindo, naquele estado em que o rápido movimento do olhar simula o estado de quem está acordado, aparece em seus sonhos a mais bela moça de branco que já vira em vida, usando brincos dourados, com o sorriso enigmático, a pele clara, na flor da idade, com uma maravilhosa e curiosa flor-de-lis nos cabelos... Trinta segundos transcorreram para ele dar-se conta de sua presença por completo. Nos demais trinta segundos, quando ensaiou uma aproximação, eis que o despertador quebrou o encanto, trazendo-o inexoravelmente ao mundo real...
Nas noites seguintes, sempre repetindo aquele fabuloso ritual – deitando-se a uma hora e seis minutos e despertando às seis horas e um minuto -, em breves sessenta segundos foi encontrando a mulher de seus sonhos que tornou-se a sua amada, mas que ele nunca conseguia a ela de todo se declarar... Iniciava uma frase, e somente no dia seguinte, um minuto antes de despertador vibrar, é que ele conseguia ouvir sua resposta, e assim aconteceram todos os encontros mágicos, durante exatos dois meses... Ele vivendo dentro de um sonho quase real, e ao despertar para a vida, vivia de olhos abertos sonhando com o encantado reencontro...
Ao sexagésimo primeiro dia, quando enfim declararia todo o seu amor àquela mulher impressionante, preferiu não deixar mais o despertador ligado... Assim que pode, sem o relógio para o despertar mais, reencontrara a mulher de seus sonhos, vivendo uma bela história sem fim, no País dos Sonhos, com seu grande amor. Seu nome era Angel, e ali, sempre ao seu lado, viveria pra sempre se nenhum barulho no mundo real o trouxesse de volta. Naquele mundo mágico ela era a Princesa do Brinco de Ouro... Naquele mundo estranho, cada segundo do mundo, passado o primeiro minuto, equivalia a um ano...
Frustrado e perdidamente apaixonado, diante da impossibilidade de um encontro fora daquele reino, o jovem, naquele mundo foi viver, torcendo para que o seu relógio biológico, em seu tique-taque de trem que passa sem parar naquela estação, só viesse a despertá-lo daquele sonho bom depois de algumas horas, que ali naquela terra de magia, equivaleriam há uma vida inteira. Ali, passado o fatídico um minuto, o tempo dos relógios não imperava mais, custando a passar... E assim foi o que aconteceu... O jovem não perdeu tempo; sabendo que cada segundo valia ouro, e cada minuto uma preciosidade. Foi desse jeito que o Cavaleiro Que Veio do Nada, então, desposou a dama, filha primogênita do rei, e foi com ela morar indefinidamente em seu castelo medieval...
Enquanto isso, no reino dos homens reais sem nenhuma majestade, o tempo seguiu o seu curso normal, com o relógio de parede em seu tique-taque militar, fumegando e arrastando seus vagões do lado de cá; contornando as curvas dos rios e morros, seguindo seu trajeto cheio de altos e baixos, até o momento em que o jovem viesse um dia, por si só, a despertar...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Control + Alt + Delete

Foto: Mariah

O livro estava aberto em asas postas ao voo longo da imaginação, justo na página em que dizia: “Há mais mistérios entre o céu e a terra que possa supor nossa vã filosofia...” Na biblioteca vazia, os livros e os seus autores mortos conviviam em paz... Nas ruas desertas, o silêncio era ensurdecedor... No rádio de um carro deixado para trás, tocava no sistema autoreverse a canção The Delicate Sound of Thunder...
Uma misteriosa epidemia confinou todos em suas casas... O contágio era feito pelo ar. Abraçar, beijar, exteriorizar qualquer tipo de emoção era fatal... A reclusão foi o melhor caminho para conter seu efeito letal... Como lagartas em um casulo, as pessoas confinaram-se em cubículos individuais, depois trancaram-se dentro de si mesmas. Assim sobreviveriam até que a Cura fosse encontrada para esse novo mal do século.
Em casa, Adam Bah, um escritor solitário, antes mesmo do surto aparecer em sua região, relia como total devoção a um livro especial, como quem procura em suas páginas e linhas alguma pista para aquilo tudo. O Amor nos Tempos do Cólera, de autoria de um escritor, mescla de poeta com profeta, passara a ser seu livro de cabeceira. Ali nas entrelinhas ele julgava ter a resposta...
Com o mundo inteiro recluso, o que salvou parte da população sobrevivente foram as máquinas, em especial, a rede mundial de computadores que interligava as pessoas mundo afora, sem precisarem sair de casa. Reclusa, restara à Humanidade apenas interagir a distância. E assim passaram-se os dias, os meses e os anos. Experiências feitas em laboratório, com estranhas pílulas coloridas, com sabores de alimentos, davam vitaminas e proteínas às pessoas. As encomendas eram feitas aos robôs que também manufaturavam, além de alimentos, remédios, roupas, tudo mais, e enviavam o pedido ao vivente, via correio. Entrega feita por seres autômatos.
Na porta da casa havia abertura que esterilizava tudo, para só então serem consumidas pelo comprador... Ninguém mais saiu de seu cubículo em anos. Os relacionamentos eram feitos via máquina. A tecnologia sofisticara-se por conta das novas necessidades. Holografias passaram a ter, além de forma, perfume, toque, consistência. As mensagens eram vistas e sentidas como reais. De vez quando alguém sumia do mundo digital, mas os sobreviventes creditavam isso ás relações descartáveis... Tudo parecia ter voltado à normalidade, até o dia em que até mesmo os serviços ficaram comprometidos pelo desgaste das máquinas, que por mais inventivas que fossem, precisavam de comandos humanos para superar a imprevisibilidade do tempo e da vida. Sem a perspicácia humana, sua contraditória racionalidade e sua intuitiva emotividade, as máquinas extremamente racionais foram repetindo padrões previsíveis de comportamento. Com o tempo, os comandos travaram e como gagos, ficaram repetindo-se como dízima periódica.
Quando a energia acabou, por falta de manutenção dos cabos deteriorados, por falta de reparos nas usinas e outros investimentos, o mundo ficou em total escuridão. Sem as máquinas, as pessoas sentiram-se de volta aos tempos da Caverna. Bah, sem ter o que fazer, sem o sistema de ar refrigerado pra ventilar seu cubículo, teve que destrancar-se por dentro primeiro, para depois abrir a porta que o levou à rua e ao mundo real. Lá fora o dia era lindo, de um céu azul profundo sem igual. No entardecer, duas luas pairavam na abóbada celeste. Uma delas era o satélite natural da Terra, e a outra, de cor magenta, ele não sabia ainda, mas era Marte em rota de aproximação...
O mundo, como ele conhecera antes do confinamento não existia mais. Ruas vazias, casas também, tudo em total solidão... Então, Adam Bah vagou sem destino, até onde suas pernas e forças puderam chegar... Era noite fria quando, enfim, cansado, no banco da praça vazia, começou a rezar uma esquecida oração. Adormecera sentado, até que uma chama breve o acordou. De olhos bem abertos viu sentada ao seu lado uma bela mulher de olhos penetrantes que com a mão quente, aquecia sua mão. Por instinto e reflexo, num movimento brusco retirou a própria mão. Lembrou-se da proibição do contato, do afeto, do risco de vida que isso implicava. Mas a moça, com o olhar terno, disse: "Não é preciso mais temer. Tudo passou e nós sobrevivemos... Olhe ao redor!”
Naquele momento, o delicado som do trovão rebombou em seu peito. E ele, meio que sem jeito, foi aproximando-se da mulher e a abraçando com todo o carinho do mundo, como se a conhecesse desde sempre... Sem nada esperar em troca além daquele calor humano quase esquecido... Seu nome era Eve. Para ele (que ainda não sabia disso) e para o resto do mundo – que já estava a par dessa história desde sempre - , ela era a única sobre a face da Terra (assim como o jovem, na questão de gênero, também o era.) E assim reinicializou-se a Vida sobre o despovoado terceiro planeta, com se fosse um imprevisto comando e combinação de teclas nalgum imenso e invisível computador... A teologia e a tecnologia aproximaram-se misteriosamente desde então...

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Papéis

Imagem: colagem de José Roig


Como de costume veio receber o dono no portão de casa. Bem sabia o cão distinguir os cheiros. Abanou o rabo e se contentou com o afago ligeiro.
Tardava mais um dia e o cansaço lhe tomava o corpo, afinal foram oito horas entre dez da manhã e seis da tarde recolhendo papéis. Setenta quilos naquele dia, nada mal para uma quarta feira. O montante do dinheiro reunido com o saldo da semana anterior, devia ser suficiente para pagar a conta da venda e ainda comprar presente para o filho que completava anos no domingo.
Sentou-se no banco de madeira bruta em frente ao fogão de lenha. O fogo aquecia a casa e a labuta diária, seus sonhos.
No caderno de contar a vida algumas páginas tingidas a nanquim. Nenhuma no entanto, que não tivesse alguns pingos coloridos a equilibrar os tons.
Assim a vida lhe parecia, assim lhe era. Papéis. Alguns tantos que lhe enchiam o carrinho. Outros tantos que via representados, assim como num espetáculo de marionetes ou em um teatro de sombras. Amassados, rabiscados, em branco, recortados, apagados. A encher pastas, gavetas, armários, peitos e almas.
A convicção da missão cumprida, da dignidade de ter lutado por mais um dia e a certeza de que tudo que lhe era caro estava no seu lugar.
Dormiria o que chamam de o sono dos justos até que o galo viesse a cantar. Até que o sol despontasse no beiral, até que ouvisse do fim da rua a voz do Chico, o velho companheiro a gritar:
_Papel, garrafa, latinha!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Invasores de corpos


Na aurora de minha vida, vi uma luz riscar o céu...
Meu pai disse tratar-se de um cometa, meu irmão, de um disco voador... Nunca esqueci aquela imagem até o dia que na TV assisti a um curioso filme chamado Invasores de Corpos que era uma refilmagem de um clássico da ficção científica intitulado Vampiros de Almas... Na história de ambos, alienígenas chegam ao planeta e tomam conta dos corpos das pessoas...
Naquela noite de inverno, depois de ver o filme, não consegui dormir. Levantei diversas vezes para ver se a porta estava trancada, se as janelas estavam fechadas, se o assobio do vento lá fora não era algum sinal misterioso para a invasão...
Cresci e os filmes passaram a ser tratados tão-somente como tais, fábulas modernas, reinvenções da vida, intertextualidade com o imaginário...
E tudo transcorreu em plena tranquilidade, até o dia que meus pensamentos começaram a não mais me pertencer... Minhas palavras aparecerem disfarçadas nas palavras escritas e faladas de outros... Que tudo que eu pensava, logo alguém estava sendo mais criativo do que eu, reescrevendo minhas ideias doutra forma...
Naquele dia, pude voltar aos tempos de menino, com receio de que os alienígenas estivessem de fato entre nós, invadindo nossos corpos, devassando nossos pensamentos, substituindo nossas ideias pelas suas, sem que a maioria se apercebesse disso...
Tenho medo de um dia abrir um jornal e ver meu clone tomando meu lugar sem que ninguém perceba... Essa invasão possui um código estranho, que é acionada de forma subliminar pela via informatizada e invadirá em breve o mundo inteiro. Basta apertar a tecla "control", associada às teclas C e V...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Menino Francisco


Menino Francisco rabiscou uma flor no papel.
_Que é isso menino, flor marrom com folhas azuis?
E a mãe, hábil manipuladora de borrachas apagou o desenho de Francisco e ensinou-lhe o que lhe parecia óbvio:
_Menino tolo, não sabe que flores são vermelhas com folhas verdes?
Menino Francisco aprendeu logo a lição. Passava os dias que lhe escorriam lentos, a desenhar flores vermelhas com folhas verdes. Muitas delas...
Menino Francisco cresceu. Arrumou emprego numa fotocopiadora. Acostumou-se logo a aceitar a rotina das pilhas de papéis à sua frente, cumprimentar os clientes que não raras vezes também eram as mesmas caras, apertar o botão e cobrar alguns centavos pelo trabalho.
Nas horas vagas o moço Francisco dedicava-se à seu passatempo preferido. Pintar telas... Flores vermelhas com folhas verdes.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O algoritmo da chuva

(Foto: Emanuel Couto)

Lá fora chovia muito, enquanto que dentro da casa a mulher chorava uma goteira sem parar...
A mulher solitária de fato e de direito, e o temporal que rosnava do lado externo não era maior nem pior do que o que estava avançando em seu interior...
A cada relâmpago lá fora, o coração da mulher disparava, seus olhos piscavam sem parar e mil flashes de lembranças perdidas, como num filme, passavam sem estrondo diante daqueles olhos que julgavam já ter visto de tudo na vida. Flashes da vida que teve um dia e que deixou desaguar pela ribanceira do rio-vida, soterrando a sua casa imaginária...
Era um dia como outro qualquer... Mas ela não era mais a mesma há muito tempo, desde que aquela casa deixou de ser o seu lar...
O vento assobiava lá fora, e as telhas da casa ameaçavam levantar voo; os pássaros, desnorteados, voavam em círculos, e o algoritmo da chuva codificado nos pingos que caíam nas poças d'água, demonstravam que a cada minuto, os mesmos pingos caíam sobre os mesmos locais, assim como os mesmos erros se repetem por toda vida sem que as pessoas deem-se conta dessa misteriosa matemática...
Ver aquilo foi pra ela a gota d'água. Preferiu sair somente com a roupa do corpo pra rua, no meio da chuva, antes que ele, o Ilustre Desconhecido que com ela vivia sem conviver retornasse faminto do trabalho... E assim o fez, e de corpo e alma, literalmente desaguou, sumindo pelo breu que se fez o dia, por conta daquele estranho temporal de emoções...
O tempo passou, e a mulher continuou solitária, noutra casa, noutra cidade, noutro trabalho... E ali, fotocopiando a vida pros outros, um dia sentiu um pingo cair sobre sua cabeça quando o colega disse que a vida era estranha... De pingo em pingo aquilo tudo virou uma improvável goteira... Era um dia como outro qualquer... Estava sol forte, de repente nuvens carregadas estavam lá fora de novo. Um temporal ameaçava por ali desabar... Era hora do almoço e os dois colegas ilhados em poucos instantes... Foi então quando a matemática dos dias, horas, minutos e segundos, em seu algoritmo peculiar que lembra o cair dos pingos da chuva numa poça d'água, misterioso balé aquático, abriu uma pequena passagem para outra dimensão...
O homem apenas pegou seu guarda-chuva preto e fez um sinal com a mão para ela: vem! E ela, naquele instante, não sabia como, perdeu por completo o medo da chuva lá fora, pois ali embaixo daquele guarda-chuva, sinônimo de abrigo e proteção, pareceu-lhe mais do que a grande metáfora da redenção... E os dois saíram à rua, bem juntinhos, sob o mesmo abrigo de lona e armação de arame, desviando das poças d'água pelo caminho, até o restaurante, ambos em silêncio, olhando-se sem nada dizer, pois as palavras nesses momentos mágicos perdem o sentido... São apenas pingos de chuva numa poça d'água qualquer a pipocar...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A indiazinha


E a velha adentrou ao recinto puxando pela mão a menina. Olhos pretos e espertos, mirou-me de canto ameaçando um sorriso acanhado.
_É uma indiazinha, coitadinha! Está a vender colares!
_Dá um abraço no tio!
_Olha que lindos!
O tio enfia as mãos no bolso e estende uma nota amassada, enquanto a velha cata algumas sobras do almoço imaginando que pelo avançado da hora, deva estar com fome.
A pequena de olhos pretos sorri. Sorrio também enquanto observo-a. Enquanto come, os olhos procuram por algo que não sei o que é. Ela balança os pés, calçados com um chinelo bem maior que eles. Parece uma senhorinha. Saia comprida, a blusa rota e um colar pendurado ao pescoço, como os que traz no balaio de fibras, abraçado à cintura.
_Ah coitadinha! Estava com fome.
A velha parece querer redimir-se pelos quinhentos anos de exploração. Toma o balaio que a menina mantem ao lado da cadeira e vai oferecendo aos que estão por ali, enquanto repete:
_É uma indiazinha!
De repente a pequena recolhe as sobras em uma sacola e sai em silêncio em direção à porta. Apenas um levantar de olhos e novamente o mesmo sorrisinho ligeiro.
Do lado de fora, sentada à sombra está a mãe amamentando o filho de colo.
A velha alcança a menina, segurando-a pelo ombro e apontando para a igreja há alguns metros de distância:
_Ta vendo aquela imagem? É a padroeira de vocês. Diz pra mãe rezar pra ela.
Nem matas, nem ocas, nem pajé, nem nada do que os livros grossos ou os professores contaram. O relógio apontava quatro horas da tarde e na terceira badalada do sino mãe e filha índias adentravam a igreja. Lá dentro um hino à padroeira.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Formigas de Deus

Foto: Frederico Figueiredo Cerdeira

Estava o menino a andar de mãos dadas com o pai pela rua deserta, eis que de repente estacou e deu um grito de surpresa:
- Olha ali pai, uma formiguinha de Deus!
O pai olhou para o chão e viu caminhando rente a parede de uma casa abandonada uma formiga daquelas pretas, dez vezes maior que uma formiga comum, mas insignificante perto dele e até do filho pequeno, ainda em fase de crescimento. Sabe-se lá por que de uma hora pra hora o menino passou a chamar tudo de cachorrinho de Deus, minhoquinha de Deus, borboleta de Deus...
Dessa feita, o menino, que tempos atrás gostava de pisar sem dó nem piedade nas formiguinhas diminutas e pagãs, diante da tal formiga de Deus, apenas observou seu trajeto pela trilha invisível, levando uma diminuta folhagem verde até sumir num pequeno buraco na parede...
Pai e filho seguiram seu caminho, de mãos dadas, rumo à escolinha. O homem deixando lá o menino, seguiu pensativo rumo ao trabalho. Curiosamente, vez por outra, ele olhava para o céu, com o olhar vidrado, como se ele fosse também uma formiguinha de Deus...

terça-feira, 7 de abril de 2009

Apenas um conto de fadas

Foto: Joaquim Pires Ferreira

Era um dia, como outro qualquer, quando o homem com aspecto de pacato - que sempre sentava-se a mesma hora, no mesmo banco da praça com seu inseparável livro nas mãos -, sentiu-se mal, faltou-lhe ar, desmaiou...
Quando voltou a si, o mundo cinza em que vivia, passou a ter uma cor vívida, beirando aquele efeito de colorização feito por computador. Mas isso ele desconhecia...
Estava ele ainda sentado na praça, quando uma bela menina de bermuda curta e com um boné vermelho, com a aba virada ao contrário, por ele passou, dirigindo-se entre os canteiros e arbustos, rumo ao centro da cidade. Atrás dela ia um senhor de meia-idade, com pés e mãos imensos, olhos arregalados, uivando atrás daqueles tenros rastros, procurando atalhar os próprios passos.
Noutra extremidade do ermo local, uma moça caminhava apenas com um calçado no pé, o vestido todo esfarrapado, olhando para trás, como quem fugia muito mais do que das horas. Era noite escura, porém o relógio da praça ainda não tocara as vinte e quatro badaladas... Quem a perseguia, queria mais do que devolver-lhe o outro pé do par de sapatos envernizados.
Mais adiante, um menino, no canto mais escondido da praça, colhia estranhas folhas de um pé que ele jurava para o vigilante ser apenas de feijão, que o levaria até às nuvens. Seus olhos estavam vidrados, como quem de fato estivesse bem longe, mas o terrível gigante que ele dizia enxergar, só desceria do céu se ele não pudesse uma antiga dívida saldar... Mas o vigia incrédulo lhe disse que fingiria não ver o tal gigante, se ele também lhe desse a sua parte...
Era já noite funda quando o homem ainda sentado na praça de novo passou mal. Ao voltar à tona, à realidade, tudo aparentemente estava na normalidade. Todos aparentavam o que diziam ser... Todos personagens de uma história sem autor... E o livro inseparável, caído ao chão estava, misteriosamente sem as suas últimas páginas, enquanto a menina do boné vermelho voltava do centro com sua bolsa dourada a girar...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Olhar Implacável


(Tela de Pablo Picasso)

Cruzou com ela hora qualquer do dia. Tinha muito tempo que não a observava com atenção. Mirou-a, frente e verso, não aprovou o que viu. Estava um bocado abatida, e aquelas olheiras então! Havia engordado também. Os cabelos brancos insistiam em denunciar seu auto-descaso. Que desleixo! Tinha o olhar vazio, sem brilho e algumas rugas precoces.

Já fora mais feliz. A vida que já fora mais generosa com ela, agora parecia esvair-se fazendo-a parecer estranhamente inanimada. Espantou os pensamentos piedosos. Não gostava deles.

_ Reage menina!!! - Pensou com seus botões - Tão jovem ainda!

E que peso parecia carregar sobre aqueles ombros que pendiam para frente como se sobre eles descansasse o mundo.

Não era feia, mas os traços delicados se encondiam agora sobre as sombrancelhas esguias que quase se encontravam sobre o vinco fundo formado entre o vão dos olhos. Tinha apenas trinta e dois anos, mas aparentava quarenta - para ser generosa com ela.

_Para de pensar bobagem e vai cuidar da sua vida!
Era isso mesmo que ia fazer. Cuidar da vida. Afinal sabia quanto os espelhos eram cruéis e o quanto as coisas desta vida eram passageiras.

Olhou para fora e para dentro dizendo para si mesma o que ela, previdente e parcimoniosa julgava saber de tempo.

_Sossega criatura, você já morreu tantas vezes que já devia estar acostumada.

sexta-feira, 27 de março de 2009

De pai para filho

Foto: Mariah

Meu pai, quando tinha cerca de quatorze anos, quis voar.
Fez um par de asas com armação de bambu forrada com papel celofane. Subiu no telhado de uma casa e de lá se jogou. Voara alguns milésimos de segundo até que a queda livre lhe arremessou contra o chão. O sonho lhe custou fraturas na cabeça, perna e braço... Depois disso, ele tornou-se artista plástico, voando apenas na imaginação, dando asas a seus sonhos com tinta sobre tela.
Eu, filho de sonhador, em sonhador me transformei quase na mesma fase da vida, próximo dos quatorze anos, através das folhas dos livros, verdadeiras asas de papel querendo voar, quando o vento passava ao largo assoviando...
Sei que meu filho também será um dia um legítimo sonhador como seu pai, avô, bisavô..., pois é essa a sina dos homens dessa família, todos descendentes de Dédalo e Ícaro. Todos com seus sonhos particulares de voar. Cada qual com o seu jeito de construir suas asas em torno das casas labirínticas da memória e da imaginação... Quem nunca voou é descendente de Minotauro, e aprisionado em seu labirinto particular pra sempre estará...

quarta-feira, 18 de março de 2009

Lógica de criança


No telefone:
_Filho, como é mesmo o nome do seu dentista? Aquele que ficava perto da escola, o último que te levei... Vou indicar à mãe do Beto.
_ Ah! Aquele que ligou aqui em casa semana passada?
_ Esse. Esse mesmo!
_ Hum... é que ele não falou o nome não. Acho que era o fulano de(n)tal.

domingo, 8 de março de 2009

A menina dos meus olhos...

Foto: Mariah

Toda a noite o mesmo sonho se repetia...
Ela sonhava com um castelo, onde vivia presa à espera de seu príncipe encantado, para ser libertada do bárbaro que a capturou...
De dia estudava, de noite sonhava, e o mesmo sonho a perseguia. E vinha como que em capítulos, de forma sequencial...
Tudo bem que ela era uma leitora de conto de fadas, adorava ver filmes de faz-de-contas, mas no final das contas (noves fora), apesar disso, de dia vivia com os pés bem firmes ao chão. Era à noite que sua sina sempre se descortinava em sua mente, quanto mais mergulhava no sono profundo... E lá do outro lado emergia num reino desencantado, em que todos eram infelizes para sempre...
O rei não gostava da própria rainha, mas com ela convivia para preservar as terras, a fortuna contra os invasores. A rainha, igualmente, preferia morrer a ter que com aquele homem sem jeito viver pro resto da existência... O príncipe consorte, azarado estava pois sua amada gostava mesmo é de seu primo-irmão, que desejava mudar a linha de sucessão, tramando contra o inválido parente. O bispo adorava fazer guerra e queimar gente. O chefe da guarda, matava em nome de Deus, mas tinha por seus prisioneiros ardente compaixão...
Era um mundo estranho em que a menina todas as noites adentrava, quando seu corpo encharcado de suor mergulhava noutra dimensão. O espelho mágico lhe dizia que o dia que ela encontrasse o verdadeiro amor, ela o reconheceria à primeira vista, mas ela passara a descrer do mundo de sonhos ao seu redor.
Então, um dia, quando a menina não conseguiu dormir profundamente, rolando na cama toda noite sem sonhar, algo parecera em seu interior mudar radicalmente. Quando acordou, o suor de seu corpo tinha um gosto salgado demais... Levantou-se e foi tomar banho, e o seu rosto no espelho pequeno do quarto a espantou. Estava transfigurado, por conta de uma noite de insônia e ansiedade.
- Será que nunca mais irei sonhar com aquele reino desencantado? - perguntou ao espelho e esse, como não poderia deixar de ser, nada respondeu, pois isso só aconteceria se ela estivesse dentro de um sonho ou de um filme.
Já na escola, no meio da aula de História, a menina cochilou por breves momentos, que foram intensos. Quando sua mente estava se desvencilhando de seu corpo, e uma brisa leve e um cheiro de maresia se aproximava dali, eis que o tímido colega ao lado a despertou.
- Clara, cuidado! O professor tá te olhando! Acorda, antes que ele te chame a atenção.
Misteriosamente a menina despertou do encanto, e ao olhar para o menino da carteira ao lado - que todos os dias estavam ali e ela nunca tinha visto direito seu rosto, tampouco sabia seu nome -, algo em seu interior mudou. Bastou olhar em seus olhos e reconher nele o que o espelho de seus sonhos previra.
Naquele dia nada disse, apenas sorriu para ele, mas o professor de História, que tinha as nítidas feições do rei de seus sonhos, piscou o olho para ela, como que se dissesse pra si mesmo:
- Essa história eu conheço, menina, nessa vida você ainda é a aluna e eu o professor...

sexta-feira, 6 de março de 2009

Sobre Flores e Jardins


(Foto de Maria Fernanda P. Barreira, do Flickr)

Dirijo-me para o canteiro colorido monocromaticamente pelo amarelo das sempre vivas, descansando meus olhos sobres elas.
Quando criança inquietava-me o fato de as sempre vivas não morrerem.
Hoje compreendo. Elas morrem, mas insistem em manter algumas de suas características vivas como a cor, por muito tempo e apesar da textura seca e do pouco viço, confundem-se facilmente com outras espécies vegetais vivas.
Não são portanto, sempre vivas, são mortas-vivas que à exemplo de algumas espécies racionais desistem de si mesmas, abandonam-se, morrem vivos... Perdem o viço, o brilho, a energia, o desejo, o lirismo.
Trabalham, andam, conversam e se comportam como robôs pré programados desprovidos de prazer, euforia ou entusiasmo. Ora, uma obrigação de quem está vivo. Mantêm a estrutura e sofrem de falência interna.
Sempre vivas são flores artificiais. Ao contrário destas, algumas espécies sabem que precisam morrer verdadeiramente infinitas vezes para tornar-se vida. Assim, não retardam esse momento.
No jardim da casa de minha mãe, havia uma flor, chamada onze horas. Durante a maior parte do tempo mantinha-se fechada, parecendo morta. Mas quando o sol atingia o auge de sua intensidade, desabrochava todo seu encanto, perfume e beleza. Morria e renascia um pouco a cada dia.
Acho que quando Deus criou o mundo desejou um grande canteiro de onze horas. Mas no meio delas, assim como ervas daninhas que nascem sem ninguem semear, germinaram sempre vivas. Um dia, talvez elas entendam que precisam assumir a morte, para transcenderem.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A árvore e a casa

Foto: Paulo Cesar

Duzentos anos atrás, existia naquele lugar entre o nunca e o talvez uma densa floresta.
Logo surgiram as primeiras pessoas, que derrubaram as seculares árvores para construir suas habitações no meio da floresta.
Duzentos anos depois, na casa assobradada e meio que assombrada - há muito tempo abandonada, sem mais florestas ao redor -, eis que ressurge pouco a pouco os primeiros galhos exteriores, que foram crescendo de dentro para fora, silenciosamente, até partir primeiro os vidros, depois as janelas, para enfim ruir a própria casa, que ao primeiro vento forte desabou...
As ruínas ficaram rodeando a imensa árvore, escondida durante décadas no interior do sobrado, como se fossem algum monumento megalítico qualquer...
E curiosamente, naquele lugar desabitado, outras árvores tornaram a renascer, até que uma pequena floresta ressurgiu, primeiro cobrindo e depois engolindo com seus galhos e folhas o que sobrara da casa.
Ninguém sabia, mas foi graças ao esforço das árvores, com seus galhos contidos, que o sobrado não tombara muito antes do acontecido.
Um dia, surgiu uma família por ali, e começou a desmatar tudo, até que sobrara aquela imensa árvore... O menino cresceu, subindo naqueles galhos e morando numa pequena casa, quase escondida ao lado da árvore. Quando ele envelheceu e enriqueceu com a venda das terras ao redor, pensou em construir naquele local a sua imensa casa, onde a sua família se enraizara.
A árvore era um Pinheiro, o sobrenome da família era Machado...
Diante desses curiosos nomes - salvo se essa história tenha se passado na histórica cidade gaúcha de Pinheiro Machado, no Brasil - esta fábula estava fadada a não ter um final feliz...

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A Cigana

(Foto de Carlos Bacha.)

Cercada de mistérios, deusa cigana, detentora dos segredos e conhecedora dos enigmas das linhas encravadas nas mãos. Sábia e assertiva, dominava os saberes ocultos, orientando os que desvendavam seus poderes.
Revelava-se verdadeiramente à poucos. Aos que tinham olhos e ouvidos atentos; mente e coração receptivos.
Era na imensidão - lago que dava vazão aos olhares perdidos - que revelava sua face e descortinava os caminhos.
Foi no compasso de duas luas, uma cheia, outra minguante que surgira.
Foi um olhar único de uma só inteireza que revelara-lhe a cigana, aquela que lhe daria as respostas há tanto procuradas.
Um único mistério ainda pairava no ar. Da imagem dual, mal definida, surgia uma sombra que impedia visualizar-lhe o rosto. Sua identidade mantinha-se ainda em segredo.
Mas eis que o sol acariciando a areia da praia fez dissiparem-se as trevas. A imagem da cigana sumindo ao longe, confundindo-se à linha do horizonte. Na areia com letras douradas pelo sol, a cigana revelara seu nome, seu último segredo: INTUIÇÃO

domingo, 8 de fevereiro de 2009

The book is on the table

Foto: Raquel Lima

O livro está sobre a mesa... Aberto e vivo, com suas folhas movidas pelo vento, que parecem asas querendo voar... A frente dele, aprisionado em si mesmo, um jovem tímido parece estar num curioso transe... Durante algumas horas sente-se outro. Seu mundo ao redor sumira por encanto e ele estava agora noutro mundo, bem distante. Como em Pasárgada... Mundo estranho, em que as fronteiras aparecem e desaparecem a todo instante...
Do lado de lá da fronteira, o jovem ouve vozes, vê pessoas, fala com estranhos, sente-se vivo... É forte, valente, belo, imortal... Há em si uma riqueza interior fenomenal.
Do lado de cá da fronteira, quem o vê, enxerga apenas alguém imóvel. Nada vê, ouve, fala... É um garoto introspectivo, que pouco se expõe, quase nada diz, é uma figura meramente decorativa... Passa desapercebido em qualquer lugar...
No mundo de lá, ele é audacioso, galante, impulsivo. Corteja a princesa em seu castelo, vive pelo reino a cavalgar, enfrenta dragões...
No mundo de cá, vive sempre sozinho, cheio de ideias, mas sem com quem conversar...
Tem vontade de não mais voltar, ficar por lá eternamente, onde possui tudo que gostaria de ser...
Naquele mundo como no outro, venta forte, e é somente nisso que os dois se parecem...
É um tempo de transformações. O jovem cavaleiro, depois de derrotar um gigante, vai naquele instante se declarar à princesa do brinco de ouro, pedir ao rei a mão de sua filha.
Mas alguém põe a mão sobre seu ombro esquerdo, e o guerreiro sai abruptamente de seu transe... Cai em si e assusta quem o desperta...
- Ai, desculpe! É que está na hora de fechar. Por favor, volte amanhã - diz a bibliotecária, que contava as horas para poder ir embora... Horas que até aquele momento se arrastavam lentamente...
Então, o jovem acordado de supetão de seu sonho que parecia não ter fim, deixa o livro sobre a mesa, marcado na página 160, fechando-o como se fosse um baú secreto.
Foi despertado de seu sonho tão bruscamente que quando já está saindo na porta da biblioteca pública, vê que a flor que daria a princesa ficara em sua mão. Surpreso e sem saber como explicar isso à moça que vinha fechar a porta, deixa a flor na escadaria do prédio e sai apressado em direção a casa de sua avó...
O livro está sobre a mesa... E ali continuará imóvel até o dia seguinte.
A moça, que antes desdobrara a orelha do livro, feita pelo jovem, coloca agora em seu lugar um marcador exatamente na página por ele dobrada...
- Coitado do garoto. Acho que o assustei. Amanhã, se ele voltar, poderá continuar sua leitura - pensa ela despretensiosamente.
Ao sair na porta, vendo a misteriosa flor, de um tom rosado que nunca vira na vida, pretensiosamente lembra-se do rapaz, e sorri de um jeito que só faz quando um outro livro seu está aberto sobre sua mesa de trabalho... Feliz sem saber o motivo, chaveia bem a porta do prédio e destranca lentamente a pequena porta interior...
A tarde está fria, mas seu coração se aquece, seu rosto cora, o tempo voa... A moça segue para casa, com a rosa dentro do casaco para não despetalar aquele pequeno sonho, sentido de olhos bem abertos... Deseja que o tempo passe logo, para amanhã voltar ao trabalho e reencontrar suas coisas no mesmo lugar.
Enquanto cada um dos jovens, o rapaz e a moça, vão para suas casas, por caminhos inversos, lá dentro da biblioteca - agora trancada até o dia seguinte -, o vento entra sem ser convidado, por uma janela que tem um vidro quebrado, fazendo o livro abrir suas páginas, abrir as asas e quase voar...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O primeiro cadáver do Azevedo


O suor escorria-lhe a face, as mãos ainda trêmulas, a respiração arquejante. Era seu primeiro, mas sabia, não seria o único. O desejo manisfestara-se incontrolavelmente tentador. Nenhum sentimento de culpa. Era prazer o que sentia. As mãos quentes sujas de sangue contrastando com o álgido corpo delgado que jazia em sua frente. O líquido viscoso escorrendo formara uma poça sobre o piso branco de linhas perpendiculares.

A sala de pintura sóbria, a cortina preta, o compartimento escuro... Pelas frestas da parede, alguns poucos raios do sol que já ameaçava se por, iluminavam de maneira desuniforme o local.

Olhou para os lados certificando-se de que ninguém testemunhava o ato. Eram três. Ele, o cadáver, e um silêncio absurdo transbordando no vácuo, interrompido apenas pelo som das batidas do martelo.

Ajeitou-o com cuidado sobre a mesa. Os olhos fechados, o cabelo arrumado, a pele limpa com um chumaço de algodão. E um ritual cumprido.

Olhou para o corpo inerte. Lembrou da promessa feita ao pai pouco antes de sua morte. Seria advogado.

Ele haveria de entender. Afinal herdara dele próprio esse gosto. Seria mais um Azevedo, agente funerário.

sábado, 31 de janeiro de 2009

A vela e o veleiro

Foto: Sissi

Dois casais de náufragos chegam à praia deserta, em total escuridão.
Céu e chão, naquele momento, eram só escuridão. Então, não demorou muito e fez-se a luz, mas de uma forma tímida. E lá no fundo, ao invés de um farol piscando, uma luminosidade caminhando em sua direção.
Ainda tremendo de frio e medo, os dois casais viram um velho ermitão se aproximar com a sua tocha na mão. Tudo indicava que ele era um antigo náufrago naquela misteriosa ilha, no meio do nada.
Então, o velho de barbas brancas imensas, disse que tinha a oferecer àquelas quatro pessoas duas opções. Uma vela quente e uma vela fria, para cada um dos dois casais fazer a própria escolha.
O casal mais jovem, e mais ousado, já plenamente recuperado, escolheu a vela quente, pois sentia frio e tal vela podia clarear a sua situação, até o dia renascer.
O casal mais maduro, sempre abraçado, escolhera a vela fria, pois era a única opção que lhe restara, e também pelo fato de que o calor humano de ambos já lhe confortara em toda viagem, e quando mais precisaram.
Então o velho náufrago disse ao primeiro casal que a sua vela quente estava ali no chão e a poderia acender com sua tocha para iluminar aquela escuridão, e isso foi feito.
Dirigindo-se para o casal mais maduro, indicou com o dedo uma direção. Teriam que caminhar toda a noite, na escuridão, mas quando o dia se fizesse presente, encontrariam a resposta para sua opção. E assim, acendendo a vela do casal jovem e apagando a sua tocha, sumiu na escuridão da ilha misteriosa. Habitante dali, desde sempre, conhecia todos os caminhos naquela desolação.
E o casal maduro caminhou toda noite até encontrar, como prometido e subentendido, do outro lado da ilha, já no amanhecer, um belo veleiro branco, e dali, continuaram a sua interrompida viagem de segunda lua-de-mel, em torno do planeta, sempre juntos, pois nem mesmo quando do naufrágio, deixaram de estar em união...
Já o casal jovem, durante a noite, em primeira lua-de-mel, quando a vela apagou e o fogo de seus dias de juventude não foi capaz de reacendê-la, acabaram brigando e confundindo seus medos com o rugido de supostas feras soltas naquela ilha praticamente deserta.
Quando o dia, enfim, renasceu, viram um veleiro branco sumir na linha do horizonte, enquanto os dois preferiram ir cada um para um lado da ilha, fazer sua fogueira para atrair algum outro navegante do amor...

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A vitrine iluminada

(Foto: Canopus)

Dentro da vitrine, o manequim dormia feliz, sonhando com um mundo em que ele poderia ser gente. Em seu sonho, os manequins podiam ter vida, enquanto as pessoas viviam como bonecos, tipo marionetes, sem a consciência de seus títeres.
O manequim dormia em sono profundo quando um clarão o retirou de seu quase eterno torpor. E ali, dentro da caixa de vidro, que era aquela vitrine, tudo se iluminou... E a noite fez-se dia, quase que por encanto...
Mas o manequim, diante da intensa claridade que lhe cegava, pouco a pouco foi percebendo uma algazarra, de vozes e mais vozes se aproximando da vitrine. Alguns vultos irreconhecíveis vinham admirar sua beleza. E ele, o manequim, sentiu-se primeiro como um peixe no aquário, depois um prisioneiro de si mesmo.
Mas, infelizmente, aquela noite que se fez dia e o sonho que tornou-se realidade, não duraram muito; pois, quando o boneco de gesso quis se movimentar, continuou estático, só lhe restando mover os olhos em direção ao público aglomerado diante da vitrine. Era um estranho casal que não se olhava nos olhos e duas crianças que não piscavam jamais, mas que do outro lado do vidro agiam como que encantados por sua vida tão banal. Não se mexiam, não falavam, apenas o olhavam sem mesmo piscar os olhos, sempre em sua direção. Uma família misteriosa que adorava visitar vitrines e nada mais.
Quando o manequim, enfim, começou a mexer os dedos dos pés e depois os das mãos, apesar de algumas rachaduras em sua pele, pôde dar alguns passos em direção à vitrine, quando algo sobrenatural aconteceu. A caixa de vidro iluminada pela luz do sol artificial, de repente se escureceu de novo, num blecaute interminável...
A última imagem que o manequim pôde recuperar de sua memória, antes da escuridão total, foi o olhar de espanto dos quatro seres do outro lado da vitrine iluminada, quando o boneco quase tocou naquela mágica vidraça. O mais velho e alto deles sacou de uma estranha arma, cheia de botões e apontou em sua direção, disparando um raio de luz, e o sol nunca mais apareceu. Algo que o impressionou por demais. E daquele momento em diante, o manequim petrificado voltou a sonhar em tornar-se gente, enquanto os quatro seres do outro lado da vitrine preferiram viver, como sempre, presos em si mesmos, visitando vez por outra vitrines iluminadas por sua aflição.

sábado, 10 de janeiro de 2009

(R)evolução



Ano:2050

Planeta: Terra

A genialidade humana faz o mundo chegar ao ápice da sua evolução tecnológica e científica. Ao mesmo tempo, humanos passam por um estranho fenômeno. São aos poucos transformados em corpos solidificados em ferro e fibra. O fenômeno, a princípio imperceptível, tem como principais sintomas a diminuição das sensações e dos sentimentos. Atinge inicialmente o coração que passa por um processo de endurecimento gradativo até petrificar-se completamente e assim, outros órgãos vão sendo atingidos pelo fenômeno. Em pouco tempo, o corpo ganha formas compactas, muito semelhante à das máquinas. Homens-máquina são criados aos milhões todos os dias, principalmente nas grandes metrópoles.

Fruto de sua extraordinária inteligência e da iminente necessidade de apoio às suas tarefas, cada vez mais amplas e difusas, passam a criar robôs dotados de “qualidades humanas”.

Assim, passam a conviver civilizadamente, homens robotizados e robôs humanizados.

Mas os cientistas alertam para o surgimento de uma nova espécie já encontrada em algumas partes do planeta. Denominada pelos estudiosos como Homo Conscientes, a nova espécie tem formas físicas muito parecidas às do Homo Racionales, difere-se no entanto, no uso consciente da sua inteligência.

Creio que estes não necessitem criar robôs à sua imagem e semelhança.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A fábula revisitada

Foto: João Chaves

Dormia de dia, cantava a noite, a talentosa cigarra, durante todo o verão...
Quando o inverno chegou, trazendo frio, chuva e desolação, a formiga operária, que trabalhara de sol a sol, carregando suprimentos para enfrentar os rigores que viriam, ficara a sorrir da tola esperteza da cigarra, que nada juntara nesse tempo todo.
Porém, a formiga desconhecia todos os cantos e encantos da cigarra, que em sobrevoo sobre o formigueiro, convenceu a grande maioria de que ela tinha tempo e talento suficientes para liderar a todos, precisando continuar livre, leve e solta pra desempenhar com maestria sua nova atribuição.
A formiga operária quis liderar um protesto, mas foi sumariamente presa por ordem da nova líder, a cigarra-mor, que eleita pelas demais formigas, passou a legislar em causa própria, sem que ninguém desse conta.
E naquele bosque em miniatura acontecia incrivelmente em microscópicas dimensões o que nas cidades ao longe outras cigarras e formigas replicavam em maior proporção...
Quando uma formiga dava-se por conta de tudo, e acordava para a vida, curiosamente acabava esmagada supostamente pelos pés ou mãos de meninos gigantes (versão modelo registrada no boletim oficial).
E desde então, cigarras e formigas continuaram a viver em sonolenta comunhão...

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Colcha de Retalhos


Despejou seu corpo arfante sobre a cama enquanto pensava em cada uma das formas coloridas que entremeavam a colcha já antiga e desbotada que descansava sobre ela. Fora colecionando pedaços que ganhara. Cada um guardava uma história. Histórias de muitos, alguns que nem mesmo conhecera, outros que já não recordava o nome.
Mas já não suportava encobrir-se com ela. Divagou em pensamentos, cochilou...
Um vento vigoroso adentrou à janela desamarrando os fios que uniam cada parte da colcha que lentamente se desfazia no ar e sumia no horizonte.
Fora tomada, de súbito por uma sensação de leveza indescritível. Sorriu, voltando o olhar para a cama nua. Sobre ela repousava agora, apenas um novelo de lã e um par de agulhas.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Aprisionados entre o real e o imaginário


Um pescador solitário passeava pela praia deserta.
No meio do caminho ensolarado achou uma pequena bola de cristal com um bonequinho dentro, indo e vindo sem sair do lugar.
Uma mulher alta e bela, toda vestida de branco, vindo do nada, apareceu em sua direção.
Naquele instante o mar silenciou. O vento sumiu. O tempo parou.
O pescador continuou indo e a mulher vindo, sem à distância se alterar.
Quando ele quis voltar, tropeçou nas pernas. O vilarejo em que morava manteve-se distante.
A mulher de branco continuou tranqüilamente em seu encalço.
Ele pensou ser algo sobrenatural, mas o eclipse do sol mudou sua opinião.
Ao olhar para o céu, descobriu um olho escuro e gigante de um menino que brincava com sua bola de cristal, correndo pela praia deserta, feliz por ter encontrado aquele presente caído do céu, enquanto uma mulher de branco, vinha caminhando em sua direção...

Observação: Imagem extraída da Internet no seguinte endereço: http://www.negociosdojapao.com.br/index.php/2007/05/02/ilusao-de-otica-2/)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Um caso Gramatical


Ele, sujeito simples
Artigo bem definido
Fazia um gênero assim, primitivo.
Ela, monossilábica solidão.
Procurando seu verbo de ligação.
Se encontraram, deu-se a conjunção.
Ela átona
Ele, um hiato silencioso
Mas era fato, estava posto
Mera análise sintática
Do seus pretéritos tão imperfeitos
Para o seus períodos compostos.

(...)

E o futuro
Estava escrito
E nas letras
A explicação
Da semântica existencial
Uma aliança selada
Um complemento nominal.
Por amor e concordância
E não havendo nada a mais
Uniram em cerimônia
suas sílabas bilabiais.
E seguem assim, juntos
Para o verbo amar
Até o infinito conjugar.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Palíndromo amoroso

(Foto: Ricardo Jaime Simões)

Eram estranhos...
Conheceram-se.
Por sete anos viveram juntos.
Separam-se.
Por sete anos ficaram distantes.
Reencontraram-se.
Eram estranhos...

José Antonio Klaes Roig

sábado, 3 de janeiro de 2009

Rápido movimento do olhar - O blog


O que é R.E.M.?
Além de nome de banda de rock norte-americana, segundo a wikipédia é:

"O sono R.E.M., ou Rapid Eye Movement (Movimento rápido dos olhos), é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos. Durante esta fase, os olhos movem-se rapidamente e a actividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado. As pessoas acordadas durante o sono REM, normalmente, sentem-se alertas, com maior índice de atenção e refrescadas, ou mais dispostas e prontas para a actividade normal. Os movimentos dos olhos associados ao REM são gerados pelo NGL (ver versão inglesa) do Tálamo e associados a ondas occipitais. Durante o sono REM o tônus muscular da pessoa diminui consideravelmente.

Duração do sono REM
Durante uma noite de sono, uma pessoa normalmente tem cerca de 4 ou 5 períodos de REM, que são bem curtos no começo da noite e mais longos no final. É comum acordar por um curto período de tempo no fim de um acesso de REM. O tempo total de sono em REM ronda os 90 a 120 minutos por noite para adultos. Entretanto a quantidade relativa de sono REM diminui acentuadamente com a idade. Um bebê recém-nascido dorme mais de 80% do tempo total de sono em sono REM; enquanto uma pessoa de 70 anos dorme menos de 10% em sono REM. A média para adultos jovens é 20% do tempo total de sono ser em sono REM. (MARKS, 1995; REIMÃO, 1996; SIEGEL, 2003)."


Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/REM_(sono)

Objetivo do blog:

Parceria entre José Antonio Klaes Roig, educador, poeta e escritor, residente em Rio Grande - RS - Brasil, com Elisângela Zampieri Panisson, educadora, poeta e escritora, residente em Curitibanos - SC - Brasil, que como colegas e amigos virtuais, resolveram criar um ambiente virtual para escrever coletivamente breves poemas e minicontos, além de pensamentos passageiros sobre coisas duradouras da vida real e virtual.

Observação: Imagem extraída da internet, do endereço abaixo, meramente ilustrativa da questão do "movimento rápido dos olhos", pela questão de olhar com um relógio em seu interior...
http://www.overmundo.com.br/_banco/multiplas/1217195678_olhos.jpg