Imagem: Bruno Ehrs
Todos os dias eram gêmeos para aquele leitor compulsivo de livros antigos, confinado em seu mundo peculiar. Para ele, todos os dias eram cinzentos e siameses. Preso em si, sem amigos nem amores, convivia com seus anjos e demônios interiores, sempre em eterna disputa territorial. Os primeiros, diziam: pense antes de fazer; os outros, faça antes de pensar! Dessa turbulência existencial, eis que o leitor de livros de autores mortos, num dia cinzento como outro qualquer, recebeu pelo correio, sua encomenda atrasada: um novo livro antigo, obviamente, desses que se compra em sebos virtuais, já que ele se recusava a sair à rua, fazia tempos, desde que mais uma peste assolara o mundo. Tudo pedia por tele-entrega. Jamais abria a porta...
Naquele dia, parecido como outro qualquer, o carteiro bateu e ninguém atendeu. O aviso de entrega foi colocado embaixo da porta, como de costume, sendo assinado de imediato pelo morador, confinado no interior da casa. Enfiada a embalagem pela devida abertura, o morador correu pra abrir seu conteúdo. Mas pra sua surpresa e indignação, não se tratava do livro solicitado e parecia à primeira vista um desses de auto-ajuda. Esbravejou às paredes: “Não se pode confiar mais nem nos Correios!” Mas compulsivo que era, sem ter nada de novo para ler, passou a folhear o estranho livro, de capa dura, com letras douradas, com aspecto de novo, trazendo junto um CD. Era uma espécie de manual de auto-regressão hipnótica, no estilo terapia de vidas passadas. E assim, foi que na calada da noite o solitário iniciou sua viagem no tempo, sentado no meio da sala, em sua cadeira de balanço.
Colocado o CD no reprodutor de mídias, com o volume baixo, a auto-hipnose começou em contagem regressiva. A voz foi conduzindo seus passos, pedindo que se concentrasse e só retornasse ao seu tempo, quando ela ordenasse. Dito e feito. Relaxado com os comandos que lhe eram dados, o solitário passageiro da solidão foi sentindo-se acompanhado pela voz meiga e terna da misteriosa moça...
Pouco a pouco foi mergulhando no interior profundo do subconsciente, depois no inconsciente, sendo guiado pela mesma voz. Revisitou primeiro o dia anterior, depois a semana, o mês e o ano passados... Como um filme visto ao contrário, passou pelas cenas mais relevantes de sua vida. O primeiro amor, o primeiro trabalho, a primeira perda familiar, etc. De vez em quando a própria voz dava-lhe uma pausa na viagem, para que recuperasse o fôlego e continuasse o mergulho profundo ao interior de si mesmo... Parecia nadar em uma piscina quente, mas eram as memórias intra-uterinas que o faziam nadar naquele Mar da Tranquilidade.
Lá no fundo do oceano, nada pacífico das memórias, quando enfim chegou, ele encontrou uma tampa lacrada, e ao forçá-la foi tragado pelo ralo gigante que se formou... Quase se afogou, no exato instante que o CD apresentara um arranhão irrecuperável, que não permitia que a voz lhe desse o comando de retorno... E ali, depois de ultrapassar a fase intra-uterina, tragado pelo ralo, acabou naufragando numa estranha praia...
Socorrido pelos pescadores da vila, descobriu logo que fora confundido por um deles. Virgílio, todos assim o chamavam... Uma linda mulher, de nome Beatriz, veio correndo em sua direção. Dizia ser sua esposa. E o, antes, homem solitário, diante de sua beleza, de vez se encantou... Beatriz, a moça do cabelo liso, escorrido, dona de um sorriso que iluminava a praia àquela noite funda, como um pequeno farol... Levado para a “sua” casa, descobriu assombrado que lá todos os porta-retratos constavam de fato seu rosto... Que todos os moradores o conheciam e era considerado o pescador mais corajoso da povoação. Mas ele, que morava em 2009, numa cidade litorânea brasileira, levou um choque ao saber que para todos, menos ele, o ano em curso era 1909, e a povoação de pescadores encontrava-se em Portugal. Lembrou-se aos poucos da regressão que fizera no tempo e que algo teria dado errado. Provavelmente ficaria ali, aprisionado pra sempre, caso ninguém pudesse seu corpo retirar do estado de suspensão... Mas ao ver a beleza da esposa desconhecida até aquele instante, não ficou triste de estar confinado naquele período e lugar. Enfim, descobrira o amor longe de seu tempo e espaço...
E assim passaram-se os dias, até o dia que ele, um leitor compulsivo, descobrira algo que a esposa mantinha escondido a sete chaves: um misterioso livro de poemas. Seu título:
Ruínas de Um Tempo Futuro. Quando começou a lê-lo algo estranho aconteceu... Os versos hipnóticos do livro o foram levando e elevando para um futuro idealizado pela mulher, muito parecido com o seu. Quando percebeu, seu corpo adormecido em 2009, começou a obedecer comandos vindos de 1909, até que num dos últimos poemas dizia:
“Abra os seus olhos e seja sempre você!” E ele despertou de imediato, sem fôlego.
Nos dias que se seguiram, já no tempo presente, continuaram cinzentos, e ele não quis abrir mais nenhum livro. Mas um dia, a saudade da esposa que nunca tivera nesta vida, fez o homem procurar pelo livro para encomendar um novo exemplar, desta vez tendo o cuidado de examinar o CD, já na entrega. Mas logo o livro caiu de suas mãos ao perceber que o sobrenome da autora era o mesmo da poeta de seu passado... Na contracapa dizia que ela vivia em Portugal, era bisneta da poeta que morrera em 1909, quando seu grande amor desapareceu sem deixar sinais, apenas uma filha em seu ventre...
Naquele instante, seu coração sem fim não soube mais por qual caminho seguir... Com os dois livros em seu poder, o que regressava ao passado e o que revisitava o futuro, o solitário vasculhou a casa em busca de uma moeda para fazer um definitivo e paradoxal cara ou coroa...
Imagem extraída do site:
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