sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

#microssonho1

 [Imagem de autoria desconhecida]

Acorde! Acorde! Acorde! - ele ouviu aquela voz distante lhe chamando para o viver. Quando abriu os olhos, não havia mais palavras, apenas um corpo em forma de violão, esperando pelo seu toque...

Umbigo

 [Imagem de autoria desconhecida]

-Mãe! disse ele. Quando eu sento meu umbigo some!
Ao que ela concluiiu: O problema do mundo é que permanecem, as pessoas demasiado tempo em pé!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Silêncio


(imagem do Flickr)

Eu só fico quieta quando quero ouvir um recado. Não que eu não saiba, também não é que eu tenha pressa. Ganhei um par de sapatos novos e dei de pisar com mais cuidado e de caminhar um andar mais atento.  Mas tem dia que silêncio incomoda. Dia que silêncio incomoda é dia que a gente escuta o vento que faz música entre o beiral e a fresta da janela e a quietude vira coisa que a cabeça quase esqueceu, mas por descuido foi largada num lugar qualquer, ficou à vista. Aí ja viu! Bem falava minha mãe... A tivesse ouvido e teria aprendido a separar lembranças. Algumas eu largaria no fundo da gaveta, onde só se mexe quando a gente precisa rever a chuva que ja mofou as palavras, nem que vez por outra eu desse de cara com a minha covardia. Minha casa é ficar quieto, mas tem dias que o barulho do mundo faz falta. Barulho do mundo é quando a vida pisca no semáforo, e tem gente cruzando a avenida, e criança correndo atras da felicidade, porque o amigo chutou muito forte. Quando eu descobri o barulho do mundo não quis mais saber do silêncio, desses, que viram dor e abraçam o peito. Quando eu nasci, eu descobri uma cidade chamada Silêncio. Seis horas da tarde tudo parava. E a quietude se espichava até o dia seguinte quando os galos, acordavam o silêncio e Silêncio acordava. Mas nem acordada fazia barulho. Silêncio era uma pausa bem comprida. Se não fossem os galos e dona Nenê que vendia doces de coco logo cedinho e tinha voz alta e batia de porta em porta, perigava de Silêncio passar o dia dormindo. Foi lá que eu vivi até a mocidade. Foi quando eu achei que felicidade devia ser uma coisa bonita que fazia barullho. Agora, quando vira outra vez silêncio eu aproveito para ir colocando umas palavras. Sempre gosto mais das palavras que dá pra gente escrever quieto. Quando vou no mundo é tanta coisa, que nem lembro. Agora eu ja me acostumei dessas coisas sem serventia e se o vento bate na janela, eu ja nem ligo mais, eu vivo mesmo é de emendar saudades!

Observação: Imagem acima, extraída do endereço abaixo
http://farm4.static.flickr.com/3194/2941879935_024054b1ce_m.jpg

sábado, 18 de setembro de 2010

O passageiro das quatro estações

(Autoria da imagem desconhecida)


Quando a moça adentrou no portal,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Também sabia que não poderia amá-la por si só. Talvez,pelo fato de que a vida imite sem jeito o sonho;e o sonhar talvez seja como reacomodar o viver em sentido contrário! E o moço,meio que a contragosto,fez de conta que não entendia os sinais,deixando ao Mágico Tempo decifrar seus próprios enigmas. Viver é escrever o próprio destino,além das próprias palavras.E o moço vazio de si bem sabia que o mundo era bem maior que isso. As palavras possuem vida própria,mas nem tudo elas podem contar.Entre o segredo e o degredo há às vezes grande interrogação.
O moço,passageiro do próprio destino,num desatino,desceu naquela misteriosa estação,sem malas nem itinerário,atrás daquela moça. Não era aquele o seu caminho,ele sabia,até descobrir que nada sabia,nem de si mesmo.Sua bússola sentimental é que o guiou até ali.
Naquela estação,como um estranho portal,o coração do moço sentiu o tempo rodopiar em falso,feito redemoinho sem explicação. Naquele mundo,um segundo era um montão.A moça era soberana de seus sonhos,e o trem,que ía e vinha,tinha a sua própria missão.
O destino os aproximou,destinados estavam a se cruzar naquela estação,ainda que estivessem noutra estação interior ao desembarcar. Quando ele a viu primeiro,e ela nem notou,ele sabia,depois lhe contou,que tinha certeza de conhecê-la,mesmo diante do improvável. Inimaginável é passar por essa vida com a bússola errante,passando diante do seu Norte magnético,com pressa,sem o reconhecer.
Mas o destino mostrou-lhe que aquela viagem(e desembarque)era apenas de passagem.Em apenas uma imagem,toda uma outra vida pode ver. Nem tudo que se vê,se crê.Nem tudo que se crê,se vê.Ele,que nem sabia de sua existência,intuía que um dia iria,enfim,conhecê-la.
E naquele instante,diante da moça de seus sonhos,ele tornou-se quase imortal,recuperando em parte suas recordações. Lembrou-se da primeira estação,quando era ainda verão,e o calor da primeira paixão o fizera soldado fiel daquela bela rainha. Naquele tempo distante,ele soldado errante,morrera literalmente de amor,guerreando pelo reino encantado em que a moça era soberana. Recordara também da segunda estação,quando as flores caíam sem parar,e que sempre chegava atrasado para conhecer seu grande amor. Nela,ele era escravo fugitivo,e a moça liberta,uma defensora da liberdade,igualdade e fraternidade.Ele perdera a cabeça,ela não.
Depois que o destino joga os seus dados,tudo está fadado a acontecer conforme a soma dos quadrados,o moço sabia muito bem. Depois que o amor joga os seus invisíveis dardos,nem tudo é tão certeiro,visto que o alvo é sempre móvel,e a vida tão passageira. Na terceira estação,frio,vento,chuva,encaixaram-se como luva no ânimo do poeta,que mais uma vez chegou atrasado ao encontro marcado.
Quando o moço reencontrou a mesma mulher das demais estações,ela estava destinada a outro,e ele resignou-se com aquele desencontro. Foi na quarta estação,a das flores,enfim,quando ele ali desceu,sempre sem destino,que um mundo novo se descortinou ao seu redor. Na última estação,o moço pode recordar de todas as demais.E o tempo recomeçou a girar os grãos de sua imensa ampulheta mágica.
E o moço,até então de olhos bem abertos,sonhando acordado,na verdade foi despertado pelo apito de um trem,vindo sabe-se lá de onde. Desperto do transe,o passageiro das quatro estações,indagou-se sobre a possibilidade de existir vida sem sonho n'algum outro lugar. Sentado no meio da estação,solitário em plena multidão,pensou se quando se perde o sonho perde-se também o sono e algo mais. De olhos bem abertos,o moço custou a acreditar no que via:diante dele,a mulher dos seus sonhos se materializara num pestanejar. O passageiro viajara pelas quatro estações,ora subvertendo a lógica do tempo,ora subtraindo dos dias aquela imensa saudade.
Ele a conhecia,desde sempre,eternamente;ela é que o estava conhecendo apenas naquele instante em que o sonho imitou a realidade. Ele olhou para ela como quem retorna de longa viagem,sentindo-se em casa como se nunca tivesse sido habitado antes por aquela visão. A moça do brinco dourado,de pé naquela estação,viu um mar de rostos sem expressão - todos vagando apressados -,fixando-se em um só.
De mundos diversos:um sem mala alguma;outra com a bagagem pesada demais,como quem carrega pedras ou deseja por uma sobre algo. O moço sem nome ofereceu à moça de seus sonhos ajuda para carregar as malas,sem se importar com o destino daquele trem das onze. Ela reconheceu nele o reflexo de um amigo distante - passageiro de um tempo errante - que não soube bem precisar,até o trem apitar.
O tempo possui três dimensões entrecruzadas: o sonho,o segredo e a vida.O destino possui também três: a amizade,a paixão e o amor. A cada reviver,o passageiro nem sempre dá-se conta de em qual dimensão poderá desembarcar,carregando apenas a bagagem interior.
Depois de vagar pelas quatro estações,ele enfim chegou adiantado,aguardando pela chegada da moça do brinco dourado,naquela estação. Naquele instante único,passado,presente e futuro brincaram de rosa dos ventos na mente do passageiro,condutor do próprio destino. Nas três estações anteriores,ele tinha confundido as placas com outra sinalização,descendo bem antes ou muito depois da moça.
A viagem era longa e a esperança do reencontro mais longa ainda.O passageiro já temia que a viagem fosse apenas em sua imaginação. Passou a duvidar do que vivia (não do que sentia) e da possibilidade que nutria de viajar no tempo;daquele amor torná-lo imortal. Ah,o amor!Não é flor delicada que se colha na primeira estação.Os céticos dirão que tudo não passa de coisa de poeta,de sonhador.
A moça,desconhecendo a jura secreta do moço,vagando pelos corredores do tempo,convidou-o para sentar-se ao seu lado no trem lotado. Lado a lado,Solitário e Solidão olharam-se ao seu modo.Ele confiava no tempo e no amor;ela desfiava seu novelo,fiando suas memórias. A moça reconhecera no ilustre desconhecido,um passageiro dos seus sonhos perdidos,um conhecido que retornava de viagem sem avisar. Todo encontro às vezes é um reecontro às avessas,promessa de vida,quando duas pessoas por acaso,despem-se do corpo e vestem a alma. Desconfiavam que nada é por acaso,nem mesmo o acaso,quando se encontraram naquela derradeira estação e embarcaram naquele trem.
Ele recusava-se a viver outra viagem sem poder amar dessa vez de fato,ainda que o Amor parecesse uma palavra quase sobrenatural. Sem aquela procura e sentimento agregado àquela moça,sua imortalidade era banal.E sem aquele encanto,o passageiro era reles mortal. O moço temia que se o amor verdadeiro,de fato não existisse,a vida seria grande prisão a céu aberto,o que faria dele um fugitivo.
Sua pequena imortalidade vagava no sentido inverso de sua imensa felicidade,que seguia junto à moça,naqueles trilhos e dormentes. Metade dos passageiros dormia de olhos fechados,a outra metade de olhos abertos.Os únicos acordados eram ele, ela e o maquinista.
Diante do óbvio,de que o Amor nos possui,mas nem sempre possuímos o Amar,o passageiro percebeu,enfim,que não precisava mais voltar. Aquela era a sua última e longa viagem,tinha perdido pelo caminho parte da inocência e imortalidade,mas era preciso seguir adiante. Enquanto a moça tricotava suas memórias,ele,sentado ao seu lado,pensava que o Amor é em parte uma viagem interior,uma idealização.
Todo passageiro das quatro estações nunca sabe ao certo o que se passa além do mundo exterior,dentro do mundo particular da amada. Mesmo assim,tudo que é verdadeiro lembra chama: alimentada deve estar para que possa alimentar também o sonhar e o amar de cada um.
A viagem se completa,por sorte,quando o passageiro encontra ao seu lado,mais que a companheira de viagem,além do meio de transporte. A viagem era longa e os demais estavam sonolentos.O moço teria dessa vez tempo de sobra para estar com a amada de outras estações. Aquela seria,com certeza,a sua última viagem,independente do que acontecesse pelo caminho com seu Amor e o seu Amar,isso ele sabia. O passageiro das quatro estações abdicaria de sua imortalidade infecunda,para fecundar na vida comum daquela moça,outra esperança. Quando a moça subiu naquele trem,ele sabia que poderia amá-la por conta própria.Mas também sabia que não poderia amá-la por si só.

domingo, 30 de maio de 2010

O (Des)Encanto

Imagem: José Boldt

Se havia algo naquele reino desencantado que jamais fora perdoado era o fato de alguém expressar o Amor fora dos dias, horas e locais expressamente determinados pelo cerimonial real.
Num lindo dia de sol sem igual, dois jovens que jamais se viram antes, de repente, tornaram-se amantes para toda a vida, a partir daquele mágico instante.
O rei velhaco - induzido pela rainha doida, que nas horas vagas transfigurava-se na bruxa Malamada -, condenou o belo casal a maldição: viverem pra sempre sem se tocar mais.
Com o cruel estratagema, a rainha, travestida de bruxa, decretou que somente poderiam tornar a se reencontrar no dia que os dois dessem de novo às mãos, algo improvável de acontecer.
Literalmente o moço e a moça foram plantados pelos soldados, cada qual de um dos lados da estrada, naquele terreno envolvido em um estranho pântano. Logo, ali enterrados até a cintura, naquele misterioso musgo que foi adentrando seus pés e pernas, criando raízes e cascas em torno do corpo dos dois, um silênio sepucral se fez.
Plantados na estrada que levava do bosque ao castelo, a maldição dos jovens amantes serviu de lição e medo aos demais que ousassem a descumprir as ordens reais. Nunca mais naquele reino se amou de tal forma enraizada.
Os dois foram condenados a viver tão próximos, mas plantados distantes um do outro. Passaram-se décadas, séculos, e as árvores resistiram ali, próximas uma da outra, crescendo, criando galhos e mais galhos, rumo ao céu. Muitos jovens estiveram por ali, nos séculos que se seguiram, amarrando cordas para balanços, usando facas para desenhar seus nomes dentro de um coração. Quando o corte era profundo, ao invés de seiva, corria um pequeno filete de sangue, e os novos amantes saiam horrorizados com a cena.
A estrada de chão batido tornou-se com o tempo de saibro, depois de pedra, por fim, de asfalto. A vila e o reino tornaram-se uma mega cidade, e aquele pequeno caminho, continuou lá, preservado na memória, por questões históricas e patrimoniais, com as duas árvores prostradas, enraizadas, quase entortadas diante do peso dos séculos e mais séculos, até que os seus galhos, dia a dia foram se aproximando, até se tocarem, e se tocando algo maravilhoso aconteceu: a maldição fora quebrada e os dois amantes, ainda com a aparência de antes, conservada por musgos, seivas e líquens, tornaram a viver, serem de novo humanos, até banharem-se na lagoa ali próxima.
Os dois se reconheceram de imediato, se abraçaram de forma voraz, voltando a se amar como gente. Mas a cidade, de repente, ficou num silencio ensurdecedor, nem mesmo os pássaros cantavam mais, todos revoaram para além mais.
Enquanto o moço e a moça, sempre de mãos dadas, passaram a refazer seu caminho do bosque ao castelo, agora um grande arranha-céu. A cada esquina foram surgindo do nada árvores enraizadas no meio da rua, das calçadas e dos carros, dentro e fora dos prédios, no meio das salas, dos quartos, algumas de pé, outras tombadas em estranhas posições...
Nenhum ser vivo de carne e osso, além dos dois, fora visto pelos arredores do reino desencantado, somente árvores e mais árvores, enraizadas em sua vidinha comum, de forma secular. Do lado do arranha-céu tinha uma pequena casa que resistia ao tempo e foi por ali que o moço e a moça, ainda apaixonados, resolveram de novo entrelaçar suas vidas, para nunca mais se distanciarem ainda que tão próximos...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Guia

(Desconheço autor da imagem)

O sol estava quase no centro do céu, quando o guia foi chamado para levar o jovem até o outro lado da mata fechada.
Como o homem era experiente e conhecia cada caminho da região, foi na frente, seguido de perto do jovem que tudo queria saber, conhecer...
No meio do caminho, apareceu uma rudimentar ponte de cordas, separando um lado do desfiladeiro do outro. A travessia era íngreme mas necessária. Lá embaixo, um rio profundo e num segundo o jovem quis voltar.
O guia disse que ia na frente e que o rapaz seguisse seus passos.
No meio da ponte, esta começou a ceder com o peso de ambos, o guia apressou o passo e o jovem ficou paralisado de medo...
A ponte cedeu de vez. O jovem ficou seguro apenas a uma das cordas, enquanto o guia descia pelo que restara da ponte. Com a mão estendida ao jovem, o homem maduro foi buscando forças para resgatar quem estava sob seus cuidados.
Depois de alguns minutos que pareceram horas, os dois chegaram ao topo. Ambos espanaram a poeira das roupas com as mãos. Dessa vez a aventura quase terminara mal.
O guia olhou em frente e disse sério ao outro: - Vamos embora, garoto! Estamos atrasados para nosso compromisso! O rapaz olhou pro relógio e espantado exclamou: - Nossa, pai, já está na hora do almoço e mamãe deve estar nos chamando!
Ali em frente a casa, no lugar de sempre, aguardava os herois e atrás deles ficara o imenso quintal da imaginação...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

No País dos Sonhos

Foto: Maria

Ele tinha certeza de que estava vivendo um sonho. Afinal, aquela mulher linda e maravilhosa ao seu redor, só poderia ser fruto de seu subconsciente, seu inconsciente ou algo mais profundo ainda... Como podia a mulher dos seus sonhos viver além dos próprios sonhos? - ele se perguntava a todo instante, se beliscando sem parar.
Era um dia como outro qualquer, mas aquele, para ele, era tudo, menos um dia como outro qualquer... Havia uma felicidade transbordante, e tudo era fruto daquela visão, miragem, sei lá, em forma de mulher ideal.
Tudo era perfeito demais, e ele sabia de antemão que perfeição não existia, além do verbete no dicionário de capa dura e amarelada dos dias que passam sem avisar. Então, se tudo era fruto de um sonho, ele quis viver cada segundo até que o sono viesse, como um infeliz mensageiro, despertá-lo de vez para a vida real.
Mas como era possível estar dentro de um sonho, e ainda ter sono? - pensava-se angustiado. Temia que, mesmo sonhando, ao acordar, enfim, ela nunca mais estivesse ao seu lado. E assim ele fez de tudo para não cochilar. Passearam de mãos dadas pela cidade, vagaram pelas ruas sem destino, até que chegaram a sua casa. Depois de uma noite de amor sem fim, ele, enfim, cansado, pestanejou - as janelas de sua alma, os olhos, se cerraram -, e logo atravessou a fronteira que leva ao País dos Sonhos, mesmo que acreditasse piamente estar vivendo, até aquele momento, tão-somente um sonho bom.
No dia seguinte, quando amanheceu, por incrível que pareça, a mulher dos sonhos continuava na mesma cama deitada, olhando sem ver o teto todo rachado. Mas era o homem que desaparecera sem deixar nenhum sinal...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O mergulho profundo

Imagem: Clarisse Regueiró

E ali estava eu, o mergulhador, junto com meu filho, em viagem de férias à pequena cidade dos meus pais, já idosos. Pouca coisa tinha mudado naquela terra, exceto eu mesmo, o mergulhador...
Meu filho queria conhecer cada local que ele muitas vezes vira no álbum de fotografias da família, em especial, a prainha onde eu e meu pai íamos nos banhar nos verões, entre pequenas embarcações, um local de águas paradas e rasas...
Nem tínhamos ainda desembarcado da lancha e meu filho gritou: Olha lá, pai! A prainha com os mesmos barcos daquelas fotos amareladas que você sempre me mostrou! Eles são coloridos! Vamos lá? Agora?
Não me fiz de rogado e com a mão de meu filho bem apertada fomos os dois para aquele local mágico de minha infância. De fato, poucas coisas haviam mudado, exceto que para o menino que eu fui um dia, tudo antes era imenso e agora, com o devido distanciamento no tempo-espaço, as coisas tomavam o seu devido lugar. O espelho mágico agora era um espelho de vidro tão-somente. Se o local estava praticamente intacto, eu , o mergulhador, já não era mais o mesmo menino que via tudo com um olhar mágico e fantástico.
Meu filho, excitado, quis entrar na água de imediato, com roupa e tudo. Lembrei-me que naquela prainha, três décadas antes, eu também tomava banho de cuecas com meu pai, e assim o fizemos. Era um dia de semana, como outro qualquer, com poucas pessoas nos arredores, mais pescadores indo pescar na lagoa adiante. Então, eu e meu filho, como cúmplices de um pequeno delito, deixamos sobre um barco encalhado no raso, nossas mochilas e roupas suadas, e somente de cuecas adentramos àquelas águas plácidas.
Depois de alguns instantes, meu reflexo na água parecia não mais me pertencer. Ficara distorcido pelas pequenas ondas que meu filho, numa imensa alegria, fazia ao meu redor. Dei alguns passos adiante e um pequeno buraco foi agigantando-se de forma inexplicável. Ou quem sabe pelo meu peso elevado. Algo dentro do mergulhador disse: aprofunde-se mais. E assim o fiz, respirando fundo e mergulhando naquelas águas rasas. Foram apenas alguns segundos...
Mas o inacreditável e o inexplicável aconteceu. Meu mergulho que era para ser breve e curto, diante da pouca profundidade do local, acabou sendo fundo demais, indo além da minha imaginação. Quando quase perdia o fôlego, resolvi subir à tona.
Ali encontrei meu filho ainda ao lado da embarcação, estranhamente com a pintura renovada. Olhei ao redor e as imagens estavam levemente alteradas, até o ar estava mais puro. Chamei meu menino pelo seu nome, mas ele sequer se virou, e quando o fez, pela minha insistência, o menino disse: Quem o senhor está chamando moço, se só estamos aqui eu e você? Naquele momento, gelei. Quis disfarçar e perguntei ao menino se ele estava só. Sua resposta provocou-me um arrepio: Não, meu pai estava aqui, mas deu um mergulho e ainda não voltou...
Diante do insólito, tentei me acalmar e não preocupar o menino com o sumiço de seu pai... Olhando-o bem, vi a incrível semelhança com as fotos amareladas de meu álbum de família e com meu filho também... Ele era a cara de meu garoto, mas na verdade se parecia muito mais comigo, quando tinha a sua idade. Essa constatação arrepiou-me mais ainda... E se... Não!, exclamei para mim mesmo, isso não pode estar acontecendo, não posso estar em frente a mim mesmo, só que trinta anos no passado! Esse paradoxo é impossível, diante das leis da física!, pensei em voz alta.
Não tive tempo sequer de me acostumar com o fato, pois quando pensava em aproveitar aquele momento para visitar as ruas e as pessoas de meu passado, eis que algumas bolhas de ar começaram a surgir próximo de onde eu estava em pé, com as águas pelo joelho. De forma instintiva, o mergulhador que vive em mim não pensou duas vezes e mergulhou em si e dentro d'água.
Quando voltei à tona, o menino ao meu redor parecia assustado... Sem saber em que época estava, perguntei a ele o que acontecera. O menino somente disse: Não sei pai, você mergulhou e voltou muito rápido, mas você não era você, e dizia que era meu avô... Somente hoje, entendi uma antiga lembrança que tive no passado de algo que pensei ser pura imaginação infantil...
Há certos mergulhos tão profundos que nos levam a sonhos perdidos, alguns parecendo reais, outros tão reais que parecem imaginação... (Nem sempre, nós, o mergulhador, temos tempo para fazer a devida despressurização emocional... Passamos tanto tempo querendo ser alguém e muitas vezes sequer somos nós mesmos... Salvo, quando em alguma poça d'água, encontramos um lago fundo para um mergulho profundo em nossa emoção perdida...).

domingo, 24 de janeiro de 2010

Palavras Roubadas


("Menina da boina verde" , Mily Possoz, 1930)

E depois fiquei ali, sem desgrudar os olhos do chão.
Era uma menina. E só. O decote nem tinha sentido. A blusa era bonita. E só. Mas o pai insistia em achar que tinha... e aqueles olhos que sempre falavam. Mania que o pai tinha... com a boca sempre tão pouco. E aquele calafrio na espinha que teimosamamente subia em direção ao pescoço sempre que isso acontecia. Como faca, cortante.
O silêncio. E só.
Os olhos então passeando rápido sobre as peças alinhadas milimetricamente pela mãe. Melhor não contrariar. Melhor. Sempre assim.
Se pelo menos falasse, se pelo menos me contasse uma história. Ou então, se já percebesse que não era mais sua menina de contar histórias na cama, dos dias que o mau tempo lhe prendia dentro de casa e que a chuva fazia uma poça debaixo da janela e eu ria quando dizia que era a tristeza de Deus, e os rios, mãos que represavam suas lágrimas, que me perguntasse sobre o menino que jogou flores pela janela do quarto, e do livro que eu escolhi para guardar a lembrança.
Os olhos que falavam. E só. E eu que nem sempre entendia. Dialeto difícil o do pai, as vezes.
O cobertor cobrindo o corpo, como o abraço do pai. Apertado. Ausente. Oito horas. O relógio da igreja anunciava.
O chão, os vincos desenhados sobre a madeira. O silêncio. E só.