quinta-feira, 4 de junho de 2009

Papéis

Imagem: colagem de José Roig


Como de costume veio receber o dono no portão de casa. Bem sabia o cão distinguir os cheiros. Abanou o rabo e se contentou com o afago ligeiro.
Tardava mais um dia e o cansaço lhe tomava o corpo, afinal foram oito horas entre dez da manhã e seis da tarde recolhendo papéis. Setenta quilos naquele dia, nada mal para uma quarta feira. O montante do dinheiro reunido com o saldo da semana anterior, devia ser suficiente para pagar a conta da venda e ainda comprar presente para o filho que completava anos no domingo.
Sentou-se no banco de madeira bruta em frente ao fogão de lenha. O fogo aquecia a casa e a labuta diária, seus sonhos.
No caderno de contar a vida algumas páginas tingidas a nanquim. Nenhuma no entanto, que não tivesse alguns pingos coloridos a equilibrar os tons.
Assim a vida lhe parecia, assim lhe era. Papéis. Alguns tantos que lhe enchiam o carrinho. Outros tantos que via representados, assim como num espetáculo de marionetes ou em um teatro de sombras. Amassados, rabiscados, em branco, recortados, apagados. A encher pastas, gavetas, armários, peitos e almas.
A convicção da missão cumprida, da dignidade de ter lutado por mais um dia e a certeza de que tudo que lhe era caro estava no seu lugar.
Dormiria o que chamam de o sono dos justos até que o galo viesse a cantar. Até que o sol despontasse no beiral, até que ouvisse do fim da rua a voz do Chico, o velho companheiro a gritar:
_Papel, garrafa, latinha!